domingo, 9 de janeiro de 2011

"Tempo Contado" em livro


Título: Tempo Contado. Diário 1994-1995
Autor: J. Rentes de Carvalho
Editora: Quetzal
Ano desta edição: 2010
Nota: a edição holandesa (Tussenjaar), data de Maio de 1996.


Recebi-o como prenda de Natal e tem-me deliciado a sua leitura. Trata-se de um diário admirável, através do qual entramos no dia-a-dia, na intimidade dos pensamentos e reflexões do autor (até onde ele nos deixa), entre 15.05.1994 e 15.05.1995, um ano na vida de um escritor.
O leiv-motiv foi, segundo o mesmo, registar o seu percurso durante o ano em que se reformou, obrigando-se assim a disciplinar o acto de escrita, nesse limiar de uma nova fase da sua vida.
Que fazia eu nesse tempo? - é a pergunta que cada um fará, desde que fosse gente, nesse lapso de tempo que, para mim, foi ontem, apesar de terem transcorrido 16/17 anos... Cada qual fará uma leitura pessoal e íntima, correlativa aos passos da vivência do autor. No meu caso pessoal, o interesse redobra, na medida em que esses foram anos trágicos em que faleceu uma parte de mim. Por isso, nostalgicamente viajei até esse passado, pela mão de Rentes, num tempo em que não tinha ainda o previlégio de conhecer pessoalmente o nosso "homem das Holandas" (conquanto já dele tivesse recebido o efémero "Transmontansen Post"). Com ele deambulei pela geografia (que bem conheço) de muitos lugares mencionados, mesmo os que se subentendem, descontando obviamente as paragens mais cosmopolitas do seu percurso, já que nunca passei para o outro lado dos Pirinéus.
No que toca ao Local, aí revi algumas pessoas que conhecemos, algumas que já cá não estão, além de situações ocorridas e que já a poucos lembra: scripta manent. Por aí constatamos que Moncorvo é, para além dos Estevais, lugar de destaque nas deambulações portuguesas e trasmontanas do autor. A Moncorvo de Rentes é o lugar onde vem comprar o jornal, abastecer-se à mercearia, ao talho, à feira. Mas, sobretudo, é o lugar mais próximo onde vem respirar, ritual que mantém hoje em dia, quando cá se encontra, pois que hábitos são coisa que não se perde com duas cantigas.
Moncorvo representa, na obra (nesta e noutras, de que destaco Ernestina), de certo modo, a "civilização" no meio deste interior rural. É a Moncorvo que vem enviar os artigos que ia escrevendo para o director do jornal holandês, ainda por fax (passaram 16 anos!), já que os mails, ainda na sua fase pré-histórica, eram de difícil envio, com ligações a cair, para além de outros problemas informáticos que também aqui se resolviam, ou recorrendo ao funcionário bancário, ou ao professor da escola, o "expert" local nos mistérios dos computadores. Este baluarte de "civilização" já o encontramos em Ernestina, quando era a Moncorvo que se vinha ao médico (quando se estava nas últimas, como aconteceu ao avô do autor, mordido por bicho peçonhento e que faleceu a caminho), ou ao dentista (o famoso Sr. Barros-dentista), ou a tratar de outros assuntos importantes.
Não há dúvida que Moncorvo disfruta de um lugar especial no imaginário e na obra rentiana, o que nos deve encher de orgulho e gratidão pela internacionalização desta vila por parte de um Grande da Literatura portuguesa (e não só), que só agora, felizmente, começa a ser devidamente (re)conhecido.
E o melhor agradecimento e melhor homenagem que lhe podemos prestar é ler a sua Obra, a qual não se restringe apenas ao suporte de papel. Homem de espírito jovem e aberto às novas tecnologias, é obrigatória a visita ao blogue que mantém há vários anos, precisamente com o mesmo título do diário: "Tempo Contado", o livro por onde tudo começou: http://tempocontado.blogspot.com/

No mesmo blog, sobre este livro, ver: http://tempocontado.blogspot.com/2010/11/tempo-contado-19941995.html

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N.Campos

5 comentários:

jose albergaria disse...

Grande livro, grande escritor, grande "trasmontano" que, quando nasceu em Vila Nova de Gaia, ocorreu "a criação do mundo".
O meu escritor preferido, de cabeceira, direi mesmo.
O romancista de Estevais onde ele, duas vezes ao ano, recupera as suas raízes do "terroir" para depois mergulhar na sua outra familia, a holandesa, que lhe deu honrarias, mulher, filhas, e netos, ao que creio saber.
Abraço,
J.A.

Anónimo disse...

viva caro Albergaria,
perfeitamente de acordo! E quanto a essa relação dual Holanda/Portugal, uma relação "bígama" no seu dizer, achei piada àquela passagem, neste livro, em que diz: "tive sonhos, claro. Tantos q dariam para três vidas. Mas cedo vi confirmada a certeza de q na própria terra ninguém é profeta. Depois, eterno farsante, achando que para castigo dos meus sonhos uma terra só seria pouco, o destino deu-me duas." (Tempo Contado, ed. Quetzal, 2010, pág. 106) - magistral!...
abraço,
N.

Anónimo disse...

Ah, e faz-nos bem, este olhar distanciado (geograficamente e na escala temporal) - e de forma assertiva, sem referir nomes, mas referindo-se seguramente ao chinfrim sobre a situação política e económica de Portugal (apesar de longe, vê-se q o nosso Amigo Rentes acompanha bem a situação), como se lê no seu apontamento de hoje (no Tempo Contado /blogue), visando os que muito compenetrados na sua "acção cívica", julgam que estão a prestar um grande serviço ao mundo por muito alto gritarem nas blogosferas:
"(...) Berram vocês na internet, exigindo mudanças e melhorias, mas a internet não é praça pública, nem tribuna, nem sequer o café. É um nevoeiro. E um blogue poderá dar-vos a ilusão de ser trombeta, mas nem chega a apito, é um murmúrio.
Passam por lá dez, cem, mil visitantes? Dois mil? Pois passam. Espreitam, farejam, lêem umas linhas, esquecem, os mentecaptos – linda palavra doutro tempo – aproveitam para vomitar ódio nos comentários. Parece movimento e é só vento. (...)" - serve para muita coisa...
Vale a pena ler o resto, aqui: http://tempocontado.blogspot.com/2011/01/para-que-tanto-berro.html

Júlia Ribeiro disse...

Vale a pena ler o resto e ler tudo quanto o autor escreve , pois é sempre tempo bem contado.
Para mim, Rentes de Carvalho é, sem qualquer dúvida, o nosso maior escritor destes últimos cem anos.
Inteligente que até arrepia, "fino que nem um alho", observador até ao micron, caladão, mas quando lhe dá na veneta, escaqueira a louça toda.
Obrigada ao Nelson por (há uns dez anos) me ter ofertado "Ernestina", o primeiro livro que li do nosso escritor de Estevais.

Abraços
Júlia

Anónimo disse...

Olá Drª Júlia,
Não sei se o nosso Amigo Rentes de Carvalho é o maior da nossa literatura do último século, mas é, seguramente, dos maiores, e inquestionavelmente o é da 2ª. metade do séc. XX e inícios de XXI. Com a particularidade única de fazer uma ponte entre um mundo urbano e super-desenvolvido, corporizado na mítica Europa (com expoente máximo na Europa do Norte, a Europa protestante, com epicentro num país como a Holanda, na charneira entre Alemanha/Bélgica/França e não longe da Grã Bretanha) e, por outro lado, esta Europa do Sul, símbolo do crónico "atraso" dos reinos católico-romanos do Sul, com Portugal como a periferia das periferias. E como periferia da periferia das periferias, a ponta do seu compasso assenta num ponto minúsculo, o mais recôndito (lugar anexo de uma freguesia), de onde lhe vem a génese: Estevais do Mogadouro e território envolvente. E é para aqui que lhe pende o coração, nessa relação bipolar em que foi construindo a sua obra. Creio que a originalidade de Rentes está, para além de um soberbo modo de escrever, nessa (in)capacidade de viver e de integrar o Local e o Global, com um olhar distanciado, mas simultaneamente capaz de nomear os personagens reais da sua aldeia, ou da sua "entourage", tratando-os por "tu". Tem a agudeza do ponto de vista de um Estrangeirado, mas sem o ser (aliás, recusa o epíteto), aliás com a sageza de um camponês - que, como bem diz a Drª Júlia, "fino que nem um alho", ou "guitcho", como diríamos aqui em transmontanês.
Isso mesmo é notório em "Tempo contado" (livro e blogue, sendo este último um caso de estudo, em termos de literatura escrita/lida em directo, através de novas tecnologias, o que não deixa de ser notável como testemunho da capacidade de adaptação do nosso autor a este mundo informático, que se considera apanágio de novas gerações!).
com abraço,
N.