domingo, 22 de maio de 2011

Quadros da transmontaneidade (45)

As malhas

Antes do primeiro golpe de malho, dir-se-ia iniciático, acometido pelo Ti Adelino, que introduzia e determinava a hora dos trabalhos o ” Deus nos ajude!” que o Ti Joaquim não dispensava, sempre seguido pelo sinal da cruz que desenhava sobre a face, fosse qual fosse o trabalho, bem podiam ser considerados o signos de Harmonia entre eles e o seu mundo. Antes de arrancar a Força dos seus braços, já carcomidos pelo tempo, era imperioso verificar o aperto dos pírtigos (eventualmente substituí-los), aos fatos de atanado grosseiro, bem presos à amengoeira mas já ressequidos pelo uso e pelos anos.
E, aberto o dia de canseira, mas simultaneamente de festa, que se adivinhava, verificados que estavam todas as alfaias de trabalho, era altura de todos tomarem os seus lugares.
Agora, era tempo de se colocarem lado a lado, em linha, como se fossem apenas um, porque só a unidade faz força, era tempo de, em ritmo cadenciado, malhar com força, beleza e sabedoria as aloiradas espigas que cobriam toda a fraga. O som dos malhos fortalecido pela unidade penetrava nas suas entranhas e a reverberação produzida, ampliada pelas paredes dos palheiros envolventes, como se fossem caixa-de-ressonância, era um ronco grave e profundo, de dor, como se ela compreendesse os homens que, sem pararem, empinavam ritmicamente os pírtigos e, aos sons guturais de oh… oph… oh… oph… que lhe saiam espontaneamente pelo esforço dispendido, esmagavam as espigas ressequidas.
Com uma rectidão que impressionava, seguiam as fieiras da manta aloirada que cobria a eira em ambos os sentidos: ora em frente, ora às arrecuas. Nada os detinha, nem mesmo o Sol que já se erguia e mostrava a sua possança.
As espigas maceradas pelos malhos desafiavam a gravidade, os grãos desbagados soltavam-se e também eles, durante breves instantes, saraivavam a palha de onde se tinham acabado de libertar.
Aos seus ouvidos chegavam-lhe os sons da malhadeira que na fraga do quebra-cu que, com uma fome medonha, devorava todos os molhos introduzidos.

(Continua…)

António Sá Gué

5 comentários:

Anónimo disse...

Olá, Sá Gué :

Como sempre, sinto que faz bem à alma esta braçada de memórias, já longínquas no espaço e mais ainda no tempo.
Obrigada, Amigo. E também lhe agradeço o ter-me dado a conhecer uma palavra nova para mim :
"amengoeira" . Na minha velha Corredoura era o "mangual".

Um grande abraço
Júlia

António Sá Gué disse...

Olá, Júlia!

Agora que fala nisso acho que também cheguei a ouvir dizer "mangual". Provavelmente utilizavam-se os dois.

Abraço, :-)

Anónimo disse...

Mangual ou malho (é o mesmo). E este instrumento era composto de dois segmentos de pau, ligados por correias (não sei o nome dessas amarrações), sendo um deles o pírtigo (penso que era a parte em q se pegava) e a mangueira (pronunciando-se o "u" - tipo "mangoeira"), a que malhava. Talvez por extensão em alguns locais se chamasse "mangoeira" ao conjunto, e que, por corruptela, derivasse em "amengoeira".
Quem melhor souber, que esclareça.
abraço,
n.

António Sá Gué disse...

Caro Nelson,

Ontem já não deu para estar contigo, peço desculpa.
A tal correia de amarração tanto quanto eu sei, era o "fato". A parte que batia o "pírtigo",a parte em que se pegava a tal "amengoeira". Penso que eram estas as partes constituintes do "malho".
Faço minhas as palavrsa do Nelson, quem melhor souber que esclareça.

Abraço

Anónimo disse...

viva António, Ok, eu ainda esperei um bocadinho, mas "no problem" - fica para a próxima.
quanto ao malho, pois realmente tinha-me passado que no texto já davas essa explicação (tinha-o lido "na diagonal" e passou-me o pormenor). Realmente dizes bem, era ao contrário - o pírtigo batia e segurava-se pela "amengoeira"/mangoeira. Não sabia era o nome das correias, que, de facto, seria o "fato" (não sei como é que depois do acordo ortográfico vais distinguir mais este "fato" do facto, mas...)
E ao reler agora melhor o teu texto, realmente é como se estivéssemos a ver um excerto de filme etnográfico. Era mesmo isso! Vi uma única vez, na minha adolescência, um cena exactamente como a que descreves, nas eiras, em Mazouco. Ainda vi malhar com o malho uma outra vez, mas só uns 2 ou 3 malhadores, nas quintas do Malhão (Martim Tirado), e não mais. As malhadeiras e ceifeiras debulhadoras, nos 70's e 80's já faziam todo o trabalho. Depois veio o fim do ciclo do ceral (e da agricultura em geral) com a famosa CEE... Mas, ao que parece, esgotada a teta da vaca, parece que vamos ter de voltar a reaprender a agricultura e, ao preço que estarão os combustíveis para as máquinas, talvez seja útil conhecer estas tecnologias antigas...
abraço,
N.