sábado, 5 de fevereiro de 2011

Quadros da transmontaneidade (33)

A matança: a barrela

A matança nunca foi trabalho, sempre foi festa, mas se se pode dizer que havia alguma tensão terminou agora, agora mesmo, depois dos fachoqueiros serem extintos, depois do Ti Chico achar que era tempo de os apagar, que o lume também se quer temperado.
– Tudo o que é excesso é maleita – aconselhou.
Em conjunto, sempre em união de esforços, o animal voltou a ser içado para o banco.
Agora, é tempo de lhe “fazer a barba” que a esfrega com pedras e cortiças, entremeada com jorros de água do cântaro, às vezes dispersa pelo crivo do regador já está no fim, já não acrescenta nada à barrela do cochino que, ao longo da ceva, nunca tomou banho, ouvia-se nas conversas brejeiras e quase sempre maliciosas d' Os Simples. Agora, trabalhavam as facas, as faquinhas e o facalhão do Ti Joaquim Cortador, que raspava, o lombo bojudo do animal, agarrando com ambas as mãos em cada uma das extremidades. Todos os refegos, todas as dobras da pele, desde as orelhas aos pés, eram raspados, limpos pelas pontas das facas que todos traziam consigo, e que retiraram dos bolsos das calças já gastas. As cerdas, o cisco, a cinza da palha ardida, em boa verdade o lixo acumulava-se no gume que, de vez em quando, era largado nas arestas do banco, ou em qualquer outro pau das imediações.
- Virem-no de papo ao ar – ordenou o Ti Joaquim Cortador quando lhe pareceu que estava devidamente limpo.
Se fosse cirurgião teria pedido que o colocassem em decúbito dorsal, mas não passava de humilde talhante, embora tivesse ademanes de Galeno: arregaçou as mangas, voltou a aguçar a faca na sua própria aguçadoura, que fizera questão de trazer de casa, pediu um pano que colocou sobre o ombro e preparou-se para abrir o animal: entrar-lhe nas entranhas. Preparou-se para dar a sua aula de anatomia anual aos restantes que, agora, se limitavam a manter o corpo do animal equilibrado, segurando pelas patas, e seguiriam, com olhar de basbaque, todos os golpes certeiros que se adivinhavam.

António Sá Gué

(Continua…)

1 comentário:

Júlia Ribeiro disse...

Tem tal vida esta descrição, que eu estive em todos os momentos da "Barrela".

Um abraço
Júlia