terça-feira, 28 de julho de 2020

A ÚLTIMA VIAGEM


Era sempre uma festa para os meus olhos quando o via já estacionado, pela rua do Jardim ou no largo Balbino Rego, o velho "machimbombo" do Rogério Rodrigues, um mercedes tipo "banheira" de cor entre o prateado e o dourado, matrícula LQ-14-63. 
Se não me antecipasse a ligar-lhe, pouco depois vinha a chamada: "Já cá estou... quer aparecer para tomar um copo?"

E era num rápido que nos encontrávamos, ou na esplanada mais próxima, se era verão, ou no tasco mais aconchegado, se já estivéssemos no frio. Quase sempre trazia um presente: ou um livro que tivesse acabado de sair, ou uns recortes que sabia serem do meu interesse, uma caneta, ou qualquer ferramenta do nosso múnus, um lápis, uma aguça, um bloco de notas, ou uns saquinhos de rebuçados do Dr. Bayard que lhe fornecia o seu amigo proprietário da respectiva fábrica, na Amadora, mas com origens em Almeida ... E da terra, levava depois, para os amigos de Lisboa, o dito machimbombo carregado de iguarias (a véspera do dia do regresso era para ir às compras: caixas de vinho, queijos, chouriças, alheiras, etc.. Sim, o RR tinha o culto dos Amigos, gostava de dar, o prazer de oferecer sem esperar nada em troca... Também por isto, por esta afectividade manifestada a seu modo de partilha, nos continua (e continuará) a doer a sua ausência... Um vazio que não se preenche, uma dor que não passa... 
Que saudades das boas e longas conversas, por vezes discordâncias (também faziam parte), e, não raro, algumas "cusquices", afora as novidades do burgo que todo se comprazia em dar, se eu ainda não soubesse, dizendo triunfante: "caramba, cheguei à meia-hora e já sei isto, e você aqui e não sabe!" - eu desculpava-me dizendo que o jornalista era ele, e como tal, traziam-lhe logo as novidades... "lá isso é verdade" - dizia sorrindo - "uma vez jornalista, nunca se deixa de o ser... é como os anões, não há ex-anões" - E ríamos.

Aconteceu ontem, ter voltado, mas já não veio com o velho machimbombo, pelo seu pé. Veio com a família, num vaso cinerário, numa última viagem, para a derradeira morada, onde fica com seus pais, o tio "Carró", sua querida Mãe e irmãos, em jazigo raso, no cemitério de Torre de Moncorvo.
Na ocasião apenas intervieram a esposa, Drª. Arlete Rodrigues, ladeada por seus filhos, noras e netas, tendo lido uma mensagem muito emotiva, e o Dr. Paulo Salgado, que leu um poema evocativo das suas vivências e lutas de outrora.  Cerimónia discreta e íntima, circunscrita aos familiares e a alguns amigos. Foi uma oportunidade para o rememorarmos - sempre - e o termos mais próximo, completando a via dolorosa do luto. Falta abrir o ciclo da celebração, com a merecida pública homenagem, logo que as circunstâncias o permitam.


É verão, e volta e meia continuo a ver por cá um machimbombo parecido, estacionado pelo largo Balbino Rego, ou pela rua do Jardim. Às vezes no parque dos Bombeiros. Instintivamente, olho para a matrícula e, para meu pesar, já não é o LQ-14-63... É quando mais sinto o vazio, a saudade imensa, a tremenda ausência de quem nunca devia ter partido. 
Como alguém escreveu na ocasião em que nos deixou, que falta nos faz o Rogério....

N.Campos

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Rogério Rodrigues - Exposição Vida e Obra na Biblioteca Municipal


Logo após o falecimento de Rogério Rodrigues a Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo montou, em tempo "record", uma bem documentada exposição, composta por um diaporama fotobiográfico, painéis com depoimentos de quem o conheceu (com destaque para o artigo de Luís Osório) e, em vitrinas, vários livros seus e em parceria, além de abundantes recortes de imprensa. 
Alguns painéis da exposição "Torre de Moncorvo, 1974-2009", com textos de Rogério Rodrigues e Assis Pacheco, a par de artigos do seu colega, amigo e conterrâneo Afonso Praça, completam a exposição.
O romance "A outra face da morte" (1985), o "Livro de Visitas" (1972), "(Re)cantos d'Amar Morto" (2011), "Torre de Moncorvo, Março de 1974 a 2009" (2009), entre outros escritos nomeadamente crónicas de imprensa, marcam aqui presença.
A actualidade moncorvense foi sendo sempre revisitada pela pena de RR, mesmo já depois da aposentação da sua actividade profissional.
Sendo de louvar esta iniciativa, tal não dispensa uma futura homenagem com mais relevo, se possível com uma marca na toponímia local (ainda que ele fosse avesso a isso).

A exposição pode ser visitada durante o horário de expediente (até às 18 horas), até ao final deste mês.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Rogério Rodrigues - exposição Vida e Obra, na Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo


Lembramos que está patente até ao final do mês de Outubro, na Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo, uma exposição sobre a Vida e Obra de Rogério Rodrigues.
Aqui fica uma breve reportagem que nos foi enviada pelo Sr. António do Espírito Santo Mourão ("Açoreira TV"):

Clicar sobre o link:
https://www.youtube.com/watch?v=ZQ_lTCuu714&feature=share&fbclid=IwAR1-xjuMLQS58JPOoKvzzWiJEENi-NcHs1ZwvUgG0TLACaN1ArGaa2hGSeY


Uma retrospectiva a não perder para quem pretenda conhecer o percurso deste ilustre moncorvense que recentemente nos deixou.

domingo, 20 de outubro de 2019

RR, por Victor Bandarra

(clicar sobre o recorte para AMPLIAR)

Mais um recorte que nos fizeram chegar sobre Rogério Rodrigues, conhecido pela alcunha de "torpedo" nas redacções dos jornais. Desta feita uma sentida crónica assinada por Víctor Bandarra, jornalista que já veio várias vezes a Moncorvo em reportagem, cá se encontrando com o seu velho amigo RR (se é que alguns desses trabalhos não eram sugeridos pelo Rogério). Daí que inicie a sua crónica com uma imagem captada numa dessas ocasiões de confraternização na taberna do Carró. Segue-se um apontamento biográfico que só poderia ser escrito por quem tão bem o conheceu. 
Partilhamos com o Víctor Bandarra essa falta que o Torpedo nos faz, imaginando quão difícil lhe seja agora voltar a terras de Moncorvo...

- Obrigado, Maria João, pelo recorte. O RR também te tinha em muito apreço. 

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

RR, por Armando Fernandes

(clicar no recorte para AMPLIAR)

Aqui fica mais um depoimento sobre Rogério Rodrigues, pelo seu contemporâneo Armando Fernandes, também jornalista e trasmontano, colunista do "Mensageiro de Bragança", de onde fizemos este recorte (edição de 17.10.2019).
Destacamos: «O quarteto - Assis Pacheco, José Cardoso Pires, Afonso Praça e Rogério, eram temíveis no tom, no som, na fúria defensora da liberdade de expressão, na crítica aos pavões das letras e das artes, mordazes no esmiuçar jocoso dos dislates praticados por enfatuados e pedantes fosse na redacção dos jornais, revistas e televisões, fosse na condição de prosadores e poetas, fosse ainda burocratas da cultura engravatados, com borboletas no pescoço, ou em mangas de camisa»...

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

RR por RR: "Um homem sem vaidades vãs"

Mais de uma semana depois, chegam-nos ainda ecos do sucedido.
Mão amiga fez-nos chegar mais um recorte com um retrato perfeito que só poderia ser captado por quem o conhecia bem. Na revista "Visão" saída hoje (17.10.2017) a jornalista Rosa Ruela, filha de F. Assis Pacheco, compadre de Rogério Rodrigues, escreveu o belo texto que se segue. E termina o artigo prometendo continuar a honrar as iniciais com que ele se assinava e ela se assina: RR!

(clicar para AMPLIAR)

O nosso agradecimento ao Doutor Paulo Salgado por nos enviar este recorte.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Rogério Rodrigues, Antologia - Recensão ao livro "Guiné, crónicas" de Paulo Salgado

Muitos dos escritos de Rogério Rodrigues são recensões e apresentações de livros, habitualmente de amigos, a que dificilmente dizia que não.

Mas esta produção literária não é menor, pelo facto de ser um reflexo de escrita alheia. Digamos que "a propos de" a sua leitura (pensada e escrita) é ela própria também literatura, assim enriquecendo as obras que glosou. Pelo que, numa futura antologia, é obrigatória uma secção para as recensões.

Nos links para os nossos blogues já se encontravam os textos de algumas recensões. Acrescentamos mais um link, do blogue "Luís Graça & camaradas da Guiné", em que se publica texto da apresentação que o Rogério fez do livro de Paulo Salgado, moncorvense também e "amigo de há mais de 50 anos", sobre a sua experiência na guerra do ultramar - "Guiné, crónicas de guerra e amor". Esta sessão teve lugar na Associação 25 de Abril, no dia 20.10.2016.
Com a devida vénia do citado blogue, aqui fica:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2016/10/guine-6374-p16639-notas-de-leitura-894.html

[clicar sobre o link]

O Doutor Paulo Salgado, autor de vários livros para além do que aqui é recenseado, era um dos grandes amigos do Rogério, tendo estado presente na última Homenagem prestada no passado dia 12/10/2019, a título pessoal e em representação do município de Torre de Moncorvo. Foi um dos oradores que se pronunciou sobre Rogério Rodrigues, num emocionado e emocionante depoimento.

Rogério /Pedro Castelhano, Antologia - Poemas para as mulheres de Moncorvo

Correspondendo ao apelo, a nossa colaboradora Manuela Aleixo enviou-nos mais três poemas do Rogério, aliás, Pedro Castelhano, dois dos quais julgamos inéditos, escritos em 2001. O primeiro, "Femina, Femina", foi depois publicado em "(Re)cantos d'amar morto" (2011), p. 42. 
Neste livro seguem-se outros poemas testemunhando o apreço do autor pelo papel da mulher e o seu encanto, como, por exemplo, "Sortilégio de mulher" (p. 43) e "Do quotidiano" (p. 47).
Para melhor contextualizar este ramalhete de poemas ofertado a um grupo de mulheres de Moncorvo a fim de serem lidos num jantar de convívio, aqui fica o bilhete autógrafo do Rogério, datado de 18.06.2001, então enviado à Nela Aleixo, através de um portador, assim como um excerto do mail que agora dela recebemos:

«(...) De resto, tenho 3 poemas mais (seguem em anexo) que o Rogério me deu para gravar na Rádio Moncorvo destinados a abrir o jantar de Gineceu que inventei em 2001 (fizeram-se apenas 3) e foram lidos por mim e pela Luz Moutinho. A gravação foi para o ar durante o aperitivo. Sei que ele gostou muito da iniciativa desse jantar e quis participar dessa forma.»

Acresce dizer que o Rogério era um gentleman, muito delicado com as senhoras.

Agradecendo a generosa colaboração, aqui ficam, com a devida vénia: 




Femina, Femina...

Em homenagem a Natália Correia que sustentou estes versos.

Deram-nos uma rosa e um direito
Um voto e um sonho imperfeito

Deram-nos a mão como quem afaga
Mas com olhar de ferro e carícia de fraga

Deram-nos canções e paisagens
Com venenos mansos e falsas imagens.

Deram-nos um mapa branco e uma geografia
De países distantes e felizes mas que já não havia.

Deram-nos a palavra desde que falar não fosse falado
E de grito abafado morríamos de silêncio apagado.

Deram-nos deuses e frutos do paraíso
Deram-nos a noção de pecado e a culpa do seu juízo.

Deram-nos a guerra como quem a paz concede.
Deram-nos a noite com manhãs de eterna sede.

Deram-nos a nudez e o vestido flutuante
A flauta e a lira e o som dissonante.

Deram-nos abrigo quando estávamos protegidas
Amoras agrestes para o resto das nossas vidas.

Deram-nos o sinal da Luz, mas de passagem.
Toda a eterna e dada luz não passava de miragem.

Deram-nos um corpo e um conteúdo.
Nada mais nos deram. Chegou a hora de exigir tudo.

- Pedro Castelhano

 * * *

Panfleto

Mulher sou e não há lua nem fulgor
De cometa que se receia.
Mulher de raiz
Que é como quem diz
De corpo e alma cheia.

Mulher sou todos os dias
Aqueles em que tu existias e não havias.
Todos os dias antes e depois
Como um futuro passado a dois
E um presente passado em que me dôo
E te dois.
Mas futuro sempre por que mulher sou
E nada mais magoa
Que o fio de água que ainda soa
Na fonte que já secou...

Mulher sou segundo a condição e o destino,
Com o Sol nas mãos a queimar o violino.
Nada mais sou que mulher
A certeza de o ser
E um gesto, um simples gesto
De olhar para amanhã
Na esperança vâ
Do Grande Sonho acontecer.
É um gesto, é um débil gesto.
Mas sou mulher. E como mulher protesto.

- Pedro Castelhano


* * *
Quotidiano

Todas as mulheres levavam flores
E um rosto triste
De  regresso a casa que os filhos
Estavam a chegar.
Todas as mulheres sonharam um sonho
Antes de chegar a casa
Onde os filhos estavam a chegar.
Ninguém as via de rosto triste
Apenas no olhar uma flor a murchar
E todas as mulheres levavam flores
Antes de chegar a casa
Onde tudo demora a chegar.

Acenderam o fogão
E o lume não era o nascer do Sol
Puseram a mesa
E a toalha não era a manhã prometida
E comeram e todos comeram
Com a poesia na arca frigorífica
E o sonho congelado
E a vida que não havia meio de chegar.

E naquela noite a mulher apagou o televisor
Beijou na cama os filhos
Fechou a luz
E recomeçou a sonhar:
Amanhã, é mesmo amanhã que a flor vai ressuscitar!

-Pedro Castelhano


terça-feira, 15 de outubro de 2019

Rogério /Pedro Castelhano, Antologia - "De bar em bar"

Procurando no meu tão desorganizado arquivo, encontrei o poema que vai em baixo (tenho outros que me foi enviando, mas foram depois publicados no seu livro "(Re)cantos d'amar morto"). Este não se encontra nos "(Re)cantos", pelo que suponho que estará inédito. Julgo que também será dedicado ao nosso Amigo Manel Mota, ou então inspirado nele, visto que o Manel não era de beber muito. Não tem data inscrita, mas o Word revela que o ficheiro foi criado em 26.03.2009. Às 17,06h.
É uma celebração. A todos os Amigos que já não vão chegar...


De bar em bar

Ao Manel


Por favor, uma cerveja para o meu amigo.
Estou só, quero falar contigo
não tenho tempo para mais.

Por favor, uma cerveja para o meu amigo.
Nesta noite falaremos de mulheres
orquídeas, rosas e malmequeres.
Nesta noite falaremos do passado
com o futuro lado a lado.

Nesta noite, cheios de copos
de bar em bar
havemos de recordar
os tormentos
os lamentos
os bons momentos
que não hão-de voltar.

Nesta noite de lua cheia,
por favor, uma cerveja para o meu amigo.

Tivemos pérolas e corais
que não teremos mais
estrelas em cada olhar
e na boca ondulava o mar
até secar.

Por favor, uma cerveja para o meu amigo.

Sei que estou bêbedo
e a cidade me esqueceu.
Não há tristeza que não venha cedo
Mas cedo ou tarde sou eu.

Por favor, uma cerveja para o meu amigo.

Não vão fechar o bar
que só ainda agora cheguei.

Pela vida andei e tanto andei
e tanto amei e tanto amei
que sou o que sou mas não sei
o tanto de tanto que  amei.

Por favor, não feche o bar
que o meu amigo está mesmo a chegar.

Por favor, uma cerveja
para o meu amigo
que não vai chegar.

Pedro Castelhano

RR - Em memória do Beto Castelo

Grande amigo de António Alberto Fernandes Castelo, técnico do Ministério da Agricultura em Torre de Moncorvo, mais conhecido localmente por Beto Castelo, Rogério Rodrigues sentiu profundamente a sua morte, tendo-lhe dedicado um texto de despedida intitulado "Um Adeus sem fim ao Beto Castelo", publicado in Voz do Nordeste, em Março de 2004:

(clicar para AMPLIAR)

Rogério Rodrigues, Antologia - "Ouvindo Fausto num bar do interior" (2004)

O nosso amigo António Cristino, do Felgar, que foi aluno de Rogério Rodrigues na Escola Secundária de Moncorvo e seu leitor e admirador convicto, guardou este belíssimo texto publicado em 27.12.2004 em A Capital, onde então era sub-director.
A cena é digna de um filme de Truffaut. Nestes solilóquios temos a escrita poderosa de Rogério Rodrigues no seu melhor, repassada de uma nota de tristeza, de melancolia, de uma solitude pesarosa face ao abandonado burgo onde já nem cães nem gatos se vêm e onde encontra uma única personagem (presente) e outra, um músico distante, só presente pela melodia e pelo vínculo pessoal que o une ao ouvinte anónimo que afinal é um amigo solitário que aterrou noutra galáxia.

Apelamos a outros leitores que possuam artigos dispersos do Rogério que nos enviem para este blogue. E porque não criarmos um Círculo de Amigos do RR, de forma a mantermos viva a sua presença através da sua obra? - Fica lançado o repto.

Obrigado, António Cristino, pela partilha.
(clicar para AMPLIAR)

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A propósito de "(Re)cantos" & “Ars Vivendi”...
















Num certo dia de Janeiro de 2013 fui com o Rogério a Miranda do Douro visitar o nosso Amigo Amadeu Ferreira que estava lá de passagem. Dia curto e frio, depressa anoiteceu e deu para ajantarar.
Havia pouco tempo que tinha saído à luz do dia o segundo livro da colecção "UniVersos", bem à altura do primeiro, os "(Re)cantos..." de Pedro Castelhano. Tratava-se de "Ars Vivendi, ars moriendi", outra grandiosa obra, em mirandês, de autoria de Amadeu Ferreira, aliás, Francisco Niêbro, com a tradução para "pertués" feita pelo Rogério. - Li-o pelo natal de 2012, como prenda antecipada que o autor me fez chegar, quase de chôfre, ainda que haurindo cada verso e bebericando cada poema, nesse inverno frio e chuvoso. Aqueceu-me a alma, mas gelou-me o espírito, sobretudo porque, parece, essa "Ars moriendi" e a assombrosa visita aos mortos (os de Sendim, como aos fantasmas do Castelo de Algoso, ou ainda ao túmulo de D. Nuno Martins de Chacim) se viria a tornar como que premonitória do que haveria de acontecer a Amadeu Ferreira, a via sacra que o levaria ao calvário.
Mas então não se pensava nisso e eles, os colossos, estavam ali tão presentes e vivinhos da silva, que outra coisa não passava pela cabeça senão a grandeza daquela poesia a brotar das raízes milenares da Terra Quente e da Terra Fria trasmontana, esta mais concretamente do vetusto planalto mirandês. E a mim, fraco aprendiz, perante estros consumados, só me restava escutar e tentar absorver o mais possível esses momentos tão especiais.
Contudo, sabendo quão volátil é o Tempo, não resisti a eternizar esse encontro, irmanando os dois autores, com tantos pontos de contacto entre si, num modestíssimo escrito desses que se metem na gaveta pela má qualidade à espera que o tempo os apague. Talvez aí devesse permanecer, pois que não interessa a ninguém, mas porque acho que não levei a máquina fotográfica, fica apenas este instantâneo, não tanto do encontro, como por ter sido rabiscado pouco tempo após a leitura dessas duas obras maiores da poética transmontana contemporânea.

Com data de 11.01.2013, aqui fica então o registo a que me refiro do memorável dia:


“Ars Vivendi” de F. Niêbro & “(Re)Cantos” de P. Castelhano
Abencerragens na charneira entre o Velho Mundo e o Ser-Estar-Sentir da Urbe, esta cada vez mais um somatório de não-lugares, ou o não-lugar (a expressão devo-a a M. Augé) por excelência, Francisco Niêbro, como Pedro Castelhano e poucos mais, são autores/personagens de transição, e, como tal, carregando todo o Saber das ancestralidades para além da Sapiência haurida da cultura erudita caldeada numa visão cosmopolita que a descida da Montanha obviamente propiciou, que nem tudo é mau nesse mergulhar nas Urbes e na aldeia global.
Todavia, quando passarem, como todos nós passaremos, nesta indefectível voragem a que se chama Lei da Vida, o que ficará? Só o Urbanóidismo, a cultura urbana indistinta… Não falo da Lhéngua, de vocábulos, de vivências (de raiz rural/agrícola). Falo de um sentir. Decerto “o mundo ficará mais pobre”, como disse/escreveu um etnólogo, Ernesto Veiga de Oliveira, num célebre artigo, ao evocar os tamborileiros em extinção (como o mirandês Virgílio Cristal), os tocadores de flauta ou viola bandurra… Tal como neste caso só pelas gravações hodiernas podemos tocar tenuemente o Velho Mundo, também só pelos vossos escritos poderemos (ou poderão os urbanóides do Futuro) ter uma pálida imagem desse/deste tempo de charneira, quais Atlantes que carregais (ainda) esse Mundo às carrancholas…
Muito haveria a escalpelizar, nestas Ars Vivendi/Moriendi, como nos (Re)Cantos d’Amar Morto. Não tendo eu competência para tanto, limito-me a sentir esses poemas e perder-me neles, como quem penetra nos interstícios das fragas ou pula os espigornos (piorneiras), gestas (giestas), urzes e restolhos…  São cousas bem sentidas, e tento sentir-me com elas, sem precisar de munto esforço. – São duas obras maiores e que de certo modo se complementam e bem irmanam nestes UniVersos da Âncora.
Bem Hajam!
Henrique de Campos

Sobre o livro "(Re)cantos d'amar morto"

Alguns ecos de imprensa e blogosfera sobre o livro "(Re)cantos d'amar morto":

- Mensageiro de Bragança, 20.03.2011:
(clicar sobre o recorte para AMPLIAR)






Rogério /Pedro Castelhano, Antologia - "(Re)Cantos d'Amar Morto"


Em Março de 2011 é editado pela Âncora, o pequeno grande livro de poesia, "(Re)cantos d'amar morto", com o pseudónimo de Pedro Castelhano. A obra inaugura a colecção Universos, dirigida por Rogério Rodrigues, a convite do seu amigo, o editor António Baptista Lopes. Aqui se reúnem alguns poemas publicados no blogue "TorredeMoncorvo in blog" e ainda um postado neste blogue: "Quando o Natal chegar" (http://torre-moncorvo.blogspot.com/2010/12/poema-de-natal-por-pedro-castelhano.html ).
O livro foi apresentado em Torre de Moncorvo, na Biblioteca Municipal, no dia 19 de Março (dia de S. José, feriado municipal), pelo seu grande amigo Amadeu Ferreira (falecido em 2015), tal como aqui noticiámos - ver aqui: http://torre-moncorvo.blogspot.com/2011/03/poesia-de-pedrocastelhano-rogerio.html
Como então disse, nessa tarde memorável, o Doutor Amadeu Ferreira, jogando com as "duplas personalidades" Rogério Rodrigues/Pedro Castelhano: " (,,,) Pedro fala da morte, soterrado em problemas da vida. E Rogério, como eu e seus amigos mais chegados sabem, não tem nem nunca teve problemas pessoais, nem existenciais. Pelo menos, era o que ele costumava dizer".  - O que mais disse, bem como a intervenção do Rogério, pode ler-se aqui:
Da nossa parte, como então dissemos no post acima indicado, poder-se-ia ainda "acrescentar à análise do título feita por Amadeu Ferreira, um outro conceito que nos parece aí contido: o de 'Mar Morto', por alusão aos célebres manuscritos achados em Qûmran, que estiveram perdidos durante mais de 2000 anos, e onde se encontra o essencial do pensamento da seita mística (e eremítica) dos Essénios, algures nos desertos da Palestina. Também alguns destes escritos (manuscritos ou não) do Rogério, estiveram como que "perdidos" durante anos, se não dentro de vasos, pelo menos dentro de gavetas [e, mais recentemente, de blogues]. A sua reconstituição permite-nos seguramente conhecer algo do seu pensamento e muito do seu sentir, tal como hoje sabemos dos essénios." - Havia, a nosso ver, algo de ascético e contemplativo na personalidade de Rogério Rodrigues/Pedro Castelhano, quando se refugiava em casa ou em cafés menos frequentados, para poder ler, pensar e escrever. Recordo o seu interesse pelos gnósticos e pelo esoterismo pré-cristão conhecido por esses manuscritos do Mar Morto. Daí que esta ideia possa estar, também ela, encriptada no rebuscado título desta obra.
Fechando a quadratura de um círculo iniciado com o (pouco) juvenil "Livro de Visitas" (1972), ainda que se registe em "(Re)cantos d'amar morto" uma maior simplificação da forma poética, agora mais "entendível", a música de fundo continua "merencória" e trágica, talvez mais agravada pela entrada no outono da vida e com a morte dos sonhos de juventude que - apesar de tudo - fervilhavam naquele período pré-revolucionário. Como pano de fundo, os clássicos sempre. O primeiro poema, "Carpe diem", expressão latina atribuída ao poeta Horácio Flaco, o das Odes (séc. I a.C), dá o mote. Depois, a belíssima "Carta à neta", recomendações que têm como referência o Tempo e as mutações do mundo (nem sempre para melhor), em que se subentende o célebre "O tempora, o mores", de Cícero. Está ainda a forma clássica bem cinzelada e polida - magnífica versão escrita da marmórea Pietá de Miguel Ângelo - no assombroso poema "Stabat Mater". E que dizer ainda dessa descida ao Hades, qual Ulisses, que são os "Nove Poemas de Novembro"? E tudo o mais até ao angustiante "Quando eu morrer por favor apaga a Luz..." - Fica-se com coração e alma esganados, sobretudo depois de tudo isto lido após o fatídico dia 8 de Outubro de 2019...

N.Campos

Rogério Rodrigues, Antologia - "Vida e mortes de Faustino Cavaco"



Em 1988 é editado pelo EuroClube o livro "Vida e mortes de Faustino Cavaco", um volumoso registo de 516 páginas, em que um homicida cadastrado conta os seus "feitos". Rogério Rodrigues consegue entrevistá-lo na prisão, pelo que a autoria da "obra" é concedida ao visado. No entanto, a condução da entrevista, transcrição e organização do texto é do jornalista RR. O caso de Faustino Cavaco, um dos célebres "irmãos Cavaco", prende-se com uma fuga da prisão de seis condenados, há mais de 30 anos, deixando atrás de si um rasto de sangue. A despeito dos crimes praticados, a RR interessou-lhe acima de tudo o lado humano do homicida condenado a 28 anos e o carácter documental e realista da narrativa.
O livro foi um enorme sucesso de vendas, encontrando-se há muito esgotado.   O caso foi "desenterrado" pelo jornalista Bruno Vieira Amaral, em artigo do "Observador", em 28.07.2016, assinalando os 30 anos da mediática fuga - ver aqui:  https://observador.pt/especiais/faustino-cavaco-a-fuga-da-prisao-que-parou-o-pais/
Tal como disse ao "Observador" (e também nos contou algumas vezes), "Rogério Rodrigues diz que o acordo estabeleceu que os direitos de autor fossem para a filha de Faustino Cavaco. Rogério quis apenas ficar com 12 exemplares: 'Hoje não tenho nenhum'. Diz que se limitou a organizar o livro, cujo original lhe chegou às mãos através de um contacto que tinha na Penitenciária de Coimbra, onde Faustino Cavaco cumpria pena".  
Diz ainda o articulista do Observador: "Para o jornalista [Rogério Rodrigues], os outros viam Faustino “como um temperamental”, mas acredita que a personalidade daquele homem tinha sido marcada pelo que sofreu, “primeiro com a morte da mãe e depois às mãos da madrasta.” Encontrou-se várias vezes com ele antes da publicação do livro e diz que “era um homem muito especial, muito interessante”. Após a sua libertação, em 1999, Faustino Cavaco terá investido numa criação de caracóis, terá explorado duas casas de alterne e, por fim, terá tido uma empresa de gestão de condomínios, sempre no Algarve. Nunca voltou a ter problemas com as autoridades. 'Ainda me convidou para o ir visitar ao Algarve, mas nunca mais nos encontrámos', diz Rogério Rodrigues, que sabe quem foi o homem da PJ que obteve a informação do esconderijo dos Cavacos, mas não revela o nome."

Este livro viria a ter outra edição no ano seguinte (1989), com a chancela da Heptágono:

Para os interessados, aqui fica o índice: 
Introdução;
- A minha família;
- A minha ida para França;
- A morte da minha mãe;
- Um carrasco na pele da madrasta;
- O 'irmão' da minha ruína;
- Regresso ao Algarve;
- Regresso do meu pai;
- A morte do meu filho;
- O principio do meu fim;
- O Pires chega de França;
- Assalto ao banco de Beja;
- A morte do 'Laginha' e dos guardas-fiscais;
- A GNR sem pistolas;
- Assalto nas barbas da PJ;
- Prisão do Michel;
- Os últimos assaltos;
- Dois de Janeiro de 1985 - O dia em que morri;
- Pela primeira vez na prisão;
- Entrada na Penitenciaria;
- O inferno de Pinheiro da Cruz;
- A fuga para a morte;
- Perseguição e captura;
- As últimas horas;
Glossário