Num certo dia de Janeiro de 2013 fui com o Rogério a Miranda do Douro visitar o nosso Amigo Amadeu Ferreira que estava lá de passagem. Dia curto e frio, depressa anoiteceu e deu para ajantarar.
Havia pouco tempo que tinha saído à luz do dia o segundo livro da colecção "UniVersos", bem à altura do primeiro, os "(Re)cantos..." de Pedro Castelhano. Tratava-se de "Ars Vivendi, ars moriendi", outra grandiosa obra, em mirandês, de autoria de Amadeu Ferreira, aliás, Francisco Niêbro, com a tradução para "pertués" feita pelo Rogério. - Li-o pelo natal de 2012, como prenda antecipada que o autor me fez chegar, quase de chôfre, ainda que haurindo cada verso e bebericando cada poema, nesse inverno frio e chuvoso. Aqueceu-me a alma, mas gelou-me o espírito, sobretudo porque, parece, essa "Ars moriendi" e a assombrosa visita aos mortos (os de Sendim, como aos fantasmas do Castelo de Algoso, ou ainda ao túmulo de D. Nuno Martins de Chacim) se viria a tornar como que premonitória do que haveria de acontecer a Amadeu Ferreira, a via sacra que o levaria ao calvário.
Mas então não se pensava nisso e eles, os colossos, estavam ali tão presentes e vivinhos da silva, que outra coisa não passava pela cabeça senão a grandeza daquela poesia a brotar das raízes milenares da Terra Quente e da Terra Fria trasmontana, esta mais concretamente do vetusto planalto mirandês. E a mim, fraco aprendiz, perante estros consumados, só me restava escutar e tentar absorver o mais possível esses momentos tão especiais.
Contudo, sabendo quão volátil é o Tempo, não resisti a eternizar esse encontro, irmanando os dois autores, com tantos pontos de contacto entre si, num modestíssimo escrito desses que se metem na gaveta pela má qualidade à espera que o tempo os apague. Talvez aí devesse permanecer, pois que não interessa a ninguém, mas porque acho que não levei a máquina fotográfica, fica apenas este instantâneo, não tanto do encontro, como por ter sido rabiscado pouco tempo após a leitura dessas duas obras maiores da poética transmontana contemporânea.
Com data de 11.01.2013, aqui fica então o registo a que me refiro do memorável dia:
“Ars Vivendi” de F. Niêbro &
“(Re)Cantos” de P. Castelhano
Abencerragens na charneira entre o
Velho Mundo e o Ser-Estar-Sentir da Urbe, esta cada vez mais um somatório de
não-lugares, ou o não-lugar (a expressão devo-a a M. Augé) por excelência,
Francisco Niêbro, como Pedro Castelhano e poucos mais, são
autores/personagens de transição, e, como tal, carregando todo o Saber das
ancestralidades para além da Sapiência haurida da cultura erudita caldeada numa
visão cosmopolita que a descida da Montanha obviamente propiciou, que nem tudo
é mau nesse mergulhar nas Urbes e na aldeia global.
Todavia, quando passarem, como todos
nós passaremos, nesta indefectível voragem a que se chama Lei da Vida, o que
ficará? Só o Urbanóidismo, a cultura urbana indistinta… Não falo da Lhéngua, de
vocábulos, de vivências (de raiz rural/agrícola). Falo de um sentir. Decerto “o
mundo ficará mais pobre”, como disse/escreveu um etnólogo, Ernesto Veiga de
Oliveira, num célebre artigo, ao evocar os tamborileiros em extinção (como o
mirandês Virgílio Cristal), os tocadores de flauta ou viola bandurra… Tal como neste caso só pelas gravações hodiernas podemos tocar tenuemente o Velho Mundo, também só
pelos vossos escritos poderemos (ou poderão os urbanóides do Futuro) ter uma
pálida imagem desse/deste tempo de charneira, quais Atlantes que carregais
(ainda) esse Mundo às carrancholas…
Muito haveria a escalpelizar, nestas
Ars Vivendi/Moriendi, como nos (Re)Cantos d’Amar Morto. Não tendo eu
competência para tanto, limito-me a sentir esses poemas e perder-me neles,
como quem penetra nos interstícios das fragas ou pula os espigornos
(piorneiras), gestas (giestas), urzes e restolhos… São cousas bem sentidas, e tento sentir-me
com elas, sem precisar de munto esforço. – São duas obras maiores e que de
certo modo se complementam e bem irmanam nestes UniVersos da Âncora.
Bem Hajam!Henrique de Campos
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