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terça-feira, 13 de março de 2012

"Quadros da Transmontaneidade" em livro - lançamento é no dia 23/03

(clicar sobre o cartaz, para o AMPLIAR)
De António Sá Gué, chegou a Obra há muito esperada: "Quadros da Transmontaneidade", que começou a germinar em alguns textos, esparsos, neste nosso blogue. O lançamento terá lugar no IX Encontro de Professores de Português do Douro Superior, mais uma vez promovido pela Escola Secundária de Torre de Moncorvo Dr. Ramiro Salgado (Agrupamento de Escolas de T. Moncorvo), no próximo dia 23 de Março, pelas 14:30h.
É autora do prefácio a Drª. Teresa Fernandes, professora de Português na Escola Secundária de Moncorvo.
Apenas para despertar o apetite, aqui fica este excerto, da contracapa:
"Este é um livro de sedimentos memoriais das gentes transmontanas. Não é nenhum levantamento etnológico, nem tão pouco um estudo antropológico do seu modus vivendi, como se possa pensar. É, antes de mais, um livro que fala da grandeza e da mesquinhez humana, de ressentimentos, de canseiras, dos tédios e das angústias que alimentam qualquer ser humano. É um livro que fala de montes elevados por emoções e dos vales profundamente escavados por sentimentos".
A não perder!!

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Quadros da Transmontaneidade

Os Quadros da Trasmontaneidade acabaram neste espaço de forma brusca e sem uma explicação e é essa explicação que agora, tardiamente, pretendo dar. É a seguinte:
Faço tenções de colocar os mesmos no papel brevemente e achei por bem considerar que o livro a sair deveria conter alguns originais.
Esta é a razão.

Um abraço a todos,

P.S.: Vale mais tarde que nunca!

terça-feira, 12 de julho de 2011

Quadros da transmontaneidade (52)

Ajoujados

Este quadro é um quadro que atravessou transversalmente várias gerações de toda a Terra Quente, creio até ser transversal a todo o Nordeste Transmontano. Esta história ouvia contar muitas vezes, ainda jovem, e creio que há ainda gente em vida que sofreu na pele com ela, ou com ele, com a falta de senso, a irresponsabilidade, mesquinhez, sei lá como a hei de caracterizar… mas que à luz desse tempo até poderá ser desculpável, digo eu. Seja como for, essa alma transmontana, que estará sempre incompleta, e que aqui tento fixar, ficaria ainda mais incompleta se não fosse registada. E reza a história que terá sido mais ou menos assim:

Naquele tempo o Estado para impor a lei recrutava gente do povo, como ainda agora faz, dava-lhe uma farda, autoridade q. b., e incumbia-os da nobre missão de zelar pela ordem e o bem-estar das gentes, sem os formar devidamente.
As aldeias viviam isoladas, agarradas aos costumes que, ao longo do tempo, criavam raízes profundas nas populações e com eles conseguiam dirimir todos os problemas que nesse viver intimo e solidário acabavam sempre por surgir. Impor leis, mesmo sendo bem intencionadas, sem a devida explicação pode sempre descambar em problemas. Esta bem podia ser a moral, deste quadro da transmontaneidade, que não está assim tão distante quanto possam pensar, e dirijo-me especialmente aos mais novos.
A autoridade sediada normalmente na Vila, neste caso em Moncorvo, patrulhava à ordem do comandante as aldeias da sua responsabilidade. Nesse dia, a patrulha terá chegado à Lousa, logo de manhã cedo, e os agentes de autoridade, zelosos, se calhar aborrecidos pela longa caminhada sempre subir que tiveram de fazer, ainda noite, se calhar a cumprir as ordens exactas do seu comandante, provavelmente, mais preocupado com a carreira dele próprio do que propriamente o Servir, desataram a multar todos, a torto e a direito. Ora era o cão que não tinha açaime, as pitas que andavam na rua, o porco que devia estar na cortelha e não a fossar nas canelhas, a taberna que estava aberta fora de horas… Sei lá, terá sido neste ambiente puramente aldeão, que a patrulha da GNR zelosa do seu trabalho, desatou a passar recibos de “oitenta e coroa” à ti Zulmira, à ti Marquinhas, a todas quantos não cumpriam a lei da República, que ficava distante, como atrás se disse.
Os homens, a essa hora da manhã, poucos andavam por ali, só os velhos, as crianças e as mulheres que, em permanentes “quefazeres”, davam vida às pedras e às ruas lamacentas da chuva dos dias antecedentes.
Perante tal injustiça, a ti Zulmira, mulher desenvolta, entroncada, sem pedir autorização a ninguém, mete-se caminho fora, desce os escarrabouçais que as ladeiras impunham e vá de chamar o ti Adriano, o seu home, que andava na lavra da vinha, lá para os lados da Trapa. Escusado será dizer quando a viam passar esbaforida, foi contando a todos quantos lhe perguntavam o “assucedido” e o sentimento de injustiça que vivia passou a fazer parte de todos.
Desconhece-se se houve toque a rebate, o que se sabe é que alguém teve a ideia de os julgar sumariamente.
- Ajoujá-los, vamos ajoujá-los – disse alguém.
Se melhor o pensaram, melhor o fizeram. Prenderam-nos ao jugo, como se faziam ao vivo, aos animais que tanto estimavam. O fim da história não sei, mas não me admira que todos os envolvidos fossem degredados para África.


António Sá Gué

P.S.: Boas férias

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Quadros da transmontaneidade (51)

Numa primeira linha, como se fossem tropa de elite, as mulheres, sempre as mulheres, dobradas sobre si mesmas e a negrejar no meio da moinha, irrespirável, que se evolava no ar, abraçavam a palha até ao limite do cumprimento dos braços para largarem logo atrás, onde, os homens, em segunda linha de combate e sempre de olhares libidinosos, estendiam os bancelhos húmidos que atavam após o segundo braçado, entretanto largado. Atrás deles, crescia uma segunda meda de fachas de palha que a criançada, entre brincadeiras e trabalho, ia arrastando até ao palheiro que ficava nas proximidades.
A esta azáfama, sem intervalos, juntava-se a canícula em crescendo constante, o suor, as dores que se ignoravam, o comunicar aos ouvidos em altos berros para porque só assim as palavras se sobrepunham ao barulho. Nessa struggle of life darwiniana, porque era disso que se tratava, era, sem dúvida, uma autêntica luta pela sobrevivência, embora num outro conceito, bem entendido. As palavras são parcas e as metáforas pobres para transmitir os sentimentos de tortura e, paradoxalmente, de alegria a que estes marinheiros se auto-impuseram. Foram condenados às galés que morreram sem nunca ver o mar, mas que foram capazes de o cantar e de se deixar enlevar pelo ondular das searas batidas pela brisa vespertina.
Esses condenados cumpriram em toda a sua plenitude o mito de Sísifo. A pedra estava agora no cimo do monte, prestes a rebolar novamente até à base, e nessa rotina monótona dos mortais, tudo olvidaram numa merenda devorada à sombra da meda, e um vinho escarrapento que saboreavam com estalidos da língua.

António Sá Gué

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Quadros da transmontaneidade (50)

- Alto! – berrou o ti Abílio Laranjeiro, enquanto levantava a mão direita, quando lhe pareceu que a correia estava suficientemente esticada.
O ti Marcolino desviou o olhar, acenou com a cabeça e travou a máquina. Colocou-a em ponto morto, rodou o manípulo, e transferiu o movimento do motor para a polia. A correia principal rodou duas vezes mas não foi suficientemente forte para transmitir todo o movimento à pesada traquitana. Destravou, engatou a primeira e forçou mais um pouco. Não andou mais que um pé, mas foi o suficiente para que todos os eixos, todas as bielas, todas as rodas entrassem finalmente em movimento. Já o pessoal se aproximava e logo o ti Abílio Laranjeiro voltou a berrar “alto” quando se apercebeu que a correia desviava fortemente para a direita, e já quase saía da polia. Tudo voltou ao início. O trator voltou atrás, chegou novamente à frente, voltou a esticar, voltou a recuar… sempre a fugir para direita, sempre a procurar o alinhamento correto por tentativa-erro.
Agora sim! Agora, todas as rodas, todas as correias eficientemente se conjugavam, dir-se-ia em jeito taylorista. Agora, uma força qualquer gerava vida no seu âmago e, de bocarra aberta, exibia as pás a oscilarem verticalmente, de forma alternada, como se dessem pontapés na palha que já começava a sair.
O barulho ensurdecia. Os malhadores foram-se distribuindo, espontaneamente, de forma fordiana, em duas linhas. Uma: carrejava os molhos desde a meda tá até à boca de entrada da malhadeira, onde o Abílio Laranjeiro de lenço tabaqueiro atado ao pescoço e a tapar-lhe a boca, os ia introduzindo, um a um, com movimentos laterais, à medida que o ti Belmiro equilibrado em cima da mesa os descarregava na aba direita, já libertos do vencelho que atirava para trás. Outra linha formava-se à saída da palha, em permanente Harmonia com a velocidade da máquina.

(Continua...)

António Sá Gué

domingo, 19 de junho de 2011

Quadros da transmontaneidade (49)

Ainda se arreliou. Assim, de repente, ter que chamar toda a família, e não só, para o ajudarem na tarefa hercúlea que é fazer a malhada, é sempre uma chatice. Já todos tinham a vida estipulada para o dia seguinte e ter de alterar os planos provocava-lhes sempre pequenas maçadas que se resolviam rapidamente, mas nem por disso deixavam de fazer esgares de contratempos mais ou menos visíveis e até ruidosos.
A mulher, a Zulmira, também não fugiu a essas preocupações. Fartou-se de rogar pragas, benignas, à malhadeira, que não tinha culpa nenhuma, ao dono da malhadeira, que nenhuma culpa tinha, ao “home”, a todos… Ter que arranjar a merenda há última da hora era sempre uma fona que muito a incomodava: ele era o bacalhau para fritar que não tinha e era preciso mercar ao soto do Júlio Castanho, ele eram os ovos que lhe faltavam porque as pitas não puseram, ele era o queijo já muito duro, os tomates para a salada que era preciso colher na horta da Choura, o ramo de salsa, o sal que se acabou e teve que pedir à vizinha, a cântara de água que era preciso carrejar… Um sem número de tarefas que só terminou já pela noite dentro. Mas tudo se amanhou.
Na manhã seguinte tudo estava pronto. A solidariedade da família e dos amigos também não falhou. O Abílio Laranjeiro, enquanto chegava a chusma, e se aprontava, introduzia nas rótulas da malhadeira massa consistente. O ti Marcolino, em cima do tractor e de cabeça completamente voltada para trás, como fazem as galinhas, esticava a correia principal da preciosa máquina.


Continua...

António Sá Gué

terça-feira, 14 de junho de 2011

Quadros da transmontaneidade (48)

Vinha devagar, a escolher caminho, a evitar as poças e os regos que as águas de inverno abriram. Entrou na fraga triunfante, dir-se-ia como general romano quando entrava em Roma. Entrou pela Canelha de Cima, aliás, aquela era a única entrada possível, não havia pedaço de fraga vazia. As medas, de todos os tamanhos e de todas as alturas, que esperavam por sua excelência há longos dias, formavam um intrincado dédalo de ruas e ruelas difícil de ultrapassar mas que, àquela hora da tarde, faziam as delícias da criançada no jogo do esconde-esconde.
Já o lusco-fusco dissolvia as linhas retas que os cumes dos palheiros desenhavam à contraluz, já as medas formavam uma massa uniforme como se no mundo não houvesse profundidade, e ainda o ti Abílio Laranjeiro e o ti Marcolino nivelavam a traquitana que na manhã seguinte iniciaria as malhas na fraga da Lage. A meda que ficava mais próxima era a do Acácio Rabelo. Era ele que teria a primazia naquele ano.


António Sá Gué

(Continua...)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Quadros da transmontaneidade (47)

Já o Sol se abeirava dos telhados dos palheiros que circundavam a fraga da Lage quando o ti Adelino e companhia pousaram os malhos. Àquela hora da tarde, por Deus crer, e de certeza condoído pelo esforço dos Homens ao longo da torreira estival, mandava sempre uma brisa que lhe secava a camisa do corpo e os ajudava na limpeza da pirâmide de grão e moinha que, ao longo do dia, se foi erguendo, lentamente, eirado após eirado.
E depois de breves experiências, depois de atirar aleatoriamente pequenas pazadas de grão para avaliar a direcção do vento, era um ver se te avias para aproveitar aquela bênção divina. As pás de madeira erguiam-se aos céus e, com gestos simples e eficazes, a pirâmide mudava de sítio. As mulheres imbuídas desse espírito, o espírito de ligação com a natureza, não esperavam pelo cansaço masculino. Ajustavam o lenço negro, apertavam a blusa e, à medida que vassouravam ao delével as espigas mais pesadas que o vento não levava, ofereciam o corpo, sim!, ofereciam o corpo, à contínua saraivada de grão que caía dos céus e as fustigava.
Não haveria nesse gesto algo mais transcendente? Não haveria nesse “oferecer de corpo às sementes que em todos os momentos e tempos sempre foram abençoadas” algo que vai para além da mera banalidade das coisas?
O Sol, agora, em cores alaranjadas, descansava sobre o cume do palheiro do ti Chico Sá. O ti Adelino, ao mesmo tempo que acarrejava aos ombros as sacas de trigo que despejava na tulha, berrava pela mulher para vir apanhar as rabeiras que haviam de fartar as pitas. O ti Pailinhas e o ti Amor, como sempre, abeiravam-se do eirado, faziam conversa do tempo e avaliavam a colheita.
Lá ao fundo, na esquina da Carvalheira, o tractor puxava, com todos os cavalos que possuía, a malhadeira do Dr. Antoninho que vinha da fraga da Catrina.

António Sá Gué

(Continua...)

domingo, 22 de maio de 2011

Quadros da transmontaneidade (45)

As malhas

Antes do primeiro golpe de malho, dir-se-ia iniciático, acometido pelo Ti Adelino, que introduzia e determinava a hora dos trabalhos o ” Deus nos ajude!” que o Ti Joaquim não dispensava, sempre seguido pelo sinal da cruz que desenhava sobre a face, fosse qual fosse o trabalho, bem podiam ser considerados o signos de Harmonia entre eles e o seu mundo. Antes de arrancar a Força dos seus braços, já carcomidos pelo tempo, era imperioso verificar o aperto dos pírtigos (eventualmente substituí-los), aos fatos de atanado grosseiro, bem presos à amengoeira mas já ressequidos pelo uso e pelos anos.
E, aberto o dia de canseira, mas simultaneamente de festa, que se adivinhava, verificados que estavam todas as alfaias de trabalho, era altura de todos tomarem os seus lugares.
Agora, era tempo de se colocarem lado a lado, em linha, como se fossem apenas um, porque só a unidade faz força, era tempo de, em ritmo cadenciado, malhar com força, beleza e sabedoria as aloiradas espigas que cobriam toda a fraga. O som dos malhos fortalecido pela unidade penetrava nas suas entranhas e a reverberação produzida, ampliada pelas paredes dos palheiros envolventes, como se fossem caixa-de-ressonância, era um ronco grave e profundo, de dor, como se ela compreendesse os homens que, sem pararem, empinavam ritmicamente os pírtigos e, aos sons guturais de oh… oph… oh… oph… que lhe saiam espontaneamente pelo esforço dispendido, esmagavam as espigas ressequidas.
Com uma rectidão que impressionava, seguiam as fieiras da manta aloirada que cobria a eira em ambos os sentidos: ora em frente, ora às arrecuas. Nada os detinha, nem mesmo o Sol que já se erguia e mostrava a sua possança.
As espigas maceradas pelos malhos desafiavam a gravidade, os grãos desbagados soltavam-se e também eles, durante breves instantes, saraivavam a palha de onde se tinham acabado de libertar.
Aos seus ouvidos chegavam-lhe os sons da malhadeira que na fraga do quebra-cu que, com uma fome medonha, devorava todos os molhos introduzidos.

(Continua…)

António Sá Gué

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Quadros da transmontaneidade (44)

As malhas

Burro velho não toma andadura, bem podia ser o dito que assentava na perfeição ao Ti Adelino. Coitado, agarrado à tradição, afeiçoado a um outro mundo, que ninguém lhe falasse em malhadeiras. Não era naquela traquitana que entrava o seu trigo, nem mesmo o centeio. Nem as animálias o comiam como deve ser. Há anos que malhava com a ajuda do Manel do Canto e do Joaquim da Eira, amigos de sempre, e não era agora, aos sessenta, que ia mudar. Nem pensar! Já tinha feito constar que na próxima terça a laje estava por sua conta. A mulher, a Manuela, na véspera, pela noitinha, já pela fresca, depois de lhe dar a malga de caldo que ele devorou em ruidosos sorvos, foi varrê-la com a vassoura de esteva que tinha amanhado, no caminho de regresso a casa, nessa mesma tarde. Varreu-a de alto a baixo: todas as cagalhetas das cabras e as palhas avelhentadas que se acumulavam nos refegos da fraga foram amontoadas numa ponta, para que, na manhã seguinte, se eirasse pela primeira vez bem cedinho.
E assim foi. Mal o Sol amarelou o cocuruto da medas, onde o Ti Joaquim se encarrapitava para tirar os primeiros molhos, fez-se o primeiro eirado. Um a um, os molhos foram sendo desatados e, com mestria, espalhados em longas esteiras sobrepostas, na miraculosa e imponente fraga e que o Ti Adelino acreditava ali ter sido colocada, por sapiência divina, de propósito para aquele fim. A fraga era agora uma manta de longos retalhos de espigas loiras. As anfractuosidades desapareceram, tornou-se ainda mais uniforme. As tiras de espigas sobrepostas davam-lhe um alinhamento, uma continuidade e uma graciosidade que, aos olhos da criançada, nunca devia desaparecer e onde era apetitoso brincar.

(Continua…)

António Sá Gué

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Quadros da transmontaneidade (43)

As malhas

Quando conheci o Ti Adelino, já não podia com um gato pelo rabo, mas mesmo com aquela idade, nunca deixou de semear. Quando se casou com a Adelina, e nos anos que se seguiram, ainda a força braçal estava com ele, nunca deixou decrua por fazer, nitrato por deitar, sementeira por semear. Afora os anos de pousio, que a terra era pobre e precisava de descansar, nunca permitiu que giesta ou esteva entrasse nos tapados que possuía. Mas agora, agora que já não dava um passo sem dar um “ai”, fazia apenas aqueles que eram dele. Sim, porque nessa altura fazia os dele e os dos outros, alguns, alguns! (quase todos), eram arrendados ao Ti Pinto Rico. Agora, semeava trigo no tapado das Devesas, que tinha recebido de herança dos pais, e de centeio uma courela lá para o lado dos Marmeleiros que tinha mercado ao Ti Joaquim de Mós.
Já tudo lhe custava fazer, até subir ou descer da burra Ruça, que não conseguia fazer sem procurar uma pedra para degrau, era uma canseira, mas ter a tulha vazia era sinónimo de fome. Por isso, arrastava-se na sementeira, na monda, na ceifa, nas malhas nem se fala, mas nunca permitiu que a mulher quisesse amassar e não tivesse grão para moer na moagem do Estácio, que o moinho do Morgado Manco,onde sempre moeu, já não existia.

Continua...

António Sá Gué

terça-feira, 19 de abril de 2011

Quadros da transmontaneidade (42)

À volta da ceifa

Antes de partir para a as malhas, deixem-me contar-lhes uma estória, em torno das ceifas, que todos os freixenistas conhecem e que eu acho uma delícia.
Dedicado a todo(a)s o(a)s freixenistas aqui vai o “Arroz dos Mazouqueiros”.

O Zé era um raparigalho como tantos outros daquele tempo. Enfezado, ranhoso, permanente ranhoso, educado pela lei do pontapé e da bofetada. Desde bem cedo que começou a levar as vacas ao lameiro, a acarrejar água para casa, a dar corpo ao adágio de que trabalho de menino é pouco, mas quem o perde é louco.
Nesse dia, a mãe mandou-o levar a janta aos segadores que andavam na courela que traziam arrendada ao Dr. Antoninho, lá para os lados do Cabecinho, já quase a entrar no termo de Freixo.
Sem resmungar lá foi, e logo que pôde fez o caminho de regresso. O recado da mãe tinha sido bem explícito: nada de vadiar pelos montes, de fazer hortinhas nos caminhos, ou de andar à cata dos ninhos. Nada de mandriar! Mal os homens acabem de comer vem depressa porque há muito trabalho a fazer.
Era sempre assim, o trabalho nunca se acabava.
Ele assim fez.
A mãe, mal o viu entrar em casa, estafado pelo calor e pelo peso da cesta, ansiosa, provavelmente, devido a algum pecadilho a consumir-lhe a paciência logo lhe perguntou:
- Ó Zé, o arroz chegou?
- Chegou! Mas foi mesmo à justa – responde ele todo lampeiro - os segadores a pousar o garfo e o arroz a acabar.

António Sá Gué

P.S.: Boa páscoa a todos!

domingo, 17 de abril de 2011

Quadros da transmontaneidade (41)

Outras ceifas: ainda a tarde

Uma brisa, muito leve, levantou-se por momentos, e eles, os pecadores daquela Divina Comédia infernal, por momentos não se vergaram sobre a tríade de regos que, em cada seitourada desferida, parecia tornar-se ainda mais longa. Ali se mantiveram erguidos, a aliviar as culpas, a saborear aquele breve e doce encanto. Ali permaneceram com a zoeira da cigarra na nascer-
-lhe na alma, a encher-lhe os ouvidos, como se fosse praga omnipresente em todos os círculos. Por momentos aliviaram a rigidez muscular, enquanto olhavam o horizonte ondulado e escutavam a cantilena repetitiva do cuco que, a Zabelinha contava em segredo, para melhor entender o futuro e conhecer o número de anos que teria de ficar solteira.
- Ainda não é tempo de atar? – instou o Ti Marcolino, quando viu o Sol a querer afocinhar nos montes.
- Sim, sim vão sendo horas - respondeu o Adérito.
E antes de se dirigirem aos eitos, desenhados pela regularidade, quase arrepiante, das gavelas que se tinham ceifado ao longo do dia, dirigiram-se à carvalheira onde o macho continuava preso. Beberam ambos pela mesma cântara de barro, limparam os beiços com as costas das mãos, e ataram ao cinto um bom manhuço de vencelhos que debaixo da albarda da animália, escondidos dos tórridos raios solares, ainda permaneciam húmidos.
Braçada após braçada, as gavelas iam sendo abraçadas uma a uma até adquirirem tamanho de molho, e ainda com as praganas metidas no pescoço eram atados por mãos musculadas que, auxiliadas por joelhadas firmes e secas ajudavam a dar-lhe a sua forma final.
- Não vem lá água! – acautelou o Ti Marcolino quando viu surgir no horizonte uma nuvem mais negra.
Para bom entendedor meia palavra basta, todos perceberam que antes de acabar o dia era preciso juntar os molhos, construir o rilheiro porque caso surgisse algum aguaceiro inoportuno e indesejado sempe ajudaria a proteger tão preciosa colheita.


António Sá Gué

domingo, 10 de abril de 2011

Quadros da transmontaneidade (40)

Outras ceifas: a da tarde

O Sol, serenamente, continuava na sua ascensão até ao zénite. Lá do alto, na sua supina venerabilidade, mostrava-se incapaz de revelar compaixão pelos mortais que ali continuavam a repetir gestos incessantemente: seitourar, sempre em golpes de três, envencilhar e pousar, seitourar, envencilhar... Ali continuavam agarrados a um sentimento de humildade que desafia a própria santidade, presos a uma sapiência de amor pela fecundidade da terra que dilui a fronteira da existência e não-existência humana.
Já não havia suor que arrefecesse os corpos, nem água que matasse a sede. Não fora a cântara de água que a Zulmira trouxera embraçada e assente na anca, quando veio trazer a janta, já devorada à sombra do carrasco, não tardariam a surgir miragens insanas na tremulina que surgia no horizonte. Preso pelos arejados chapéus de palhinhas de abas largas, mercados na feira dos 23 na vila, o lenço tabaqueiro avermelhava nos cachaços tisnados e, em movimentos cíclicos, mãos ásperas como o restolho, levavam-no à testa e absorvia o suor. O sal, que nem só tempera, corroía e descolorava, pela constante evaporação, os costados e os sovacos dos andrajos garridos daquelas almas pecantes que, naquele vórtice infernal, cumpriam pena.
As sombras alongavam-se.

António Sá Gue

(Continua...)

domingo, 3 de abril de 2011

Quadros da transmontaneidade (39)


Outras ceifas: a manhã

Quando o Ti Marcolino desmontou do macho, deixando-se escorregar albarda abaixo, já os jeireiros protegiam aos dedos de eventuais naifadas da seitoura com os grossos dedais de atanado e, sempre com chalaças pelo meio, decidiam quem tomaria o primeiro eito.
Ainda ele não tinha chegado com os pés ao chão e já o macho, sempre irrequieto, se desviava para derriçar um tufo de espigas que se lhe metiam olhos dentro.
- Rais te partam, demónio dos quintos dos infernos – maldisse o Ti Marcolino ao mesmo tempo que se equilibrava e lhe puxava o rabeiro com força. Prendeu-o, de rédea curta, à carvalheira que ficava à mão direita do portelo.
O Sol já lá vinha, os jeireiros, com o barulho de corte das seitouras e o roçagar das espigas metidos nos ouvidos nem escutaram a praga do Ti Marcolino. Havia que aproveitar a fresca, antes que o Sol ameaçasse queimar tudo e todos, antes que o tapado se transformasse numa das portas infernais de Dante.
O Ti Adérito prensado entre os outros, ao sentir as espigas a tocarem-lhe nas nalgas desencadeado pelos movimentos mais impetuosos do Ti Albano, que vinha no seu encalce, em boa verdade ao sentir-se acossado pelo seu persegudor desencadeou a primeira picardia:
- Estás folgado… – acusou ele – passa p’rá frente.
Riu-se. Mas nem por isso diminui a frequência dos golpes da seitoura, nem por isso deixou de envencilhar com destreza as mancheias que se iam acumulando na mão esquerda e ia colocando atrás de si. O Ti Joaquim, afamada na arte, continuava mais à frente alheio do despique dos seus seguidores.
E, pouco a pouco, seitourada após seitourada, iam-se desenhando os cortes, o restolho ia dando lugar ao ondular encantado da seara. As gavelas, montes de trigo, militarmente alinhadas iam demarcando os eitos já segados, sempre no mesmo sentido, sempre a aproveitar do declive do terreno, sempre a começar no baixos e acabar nos altos.
Quando apareceu a Isabel, a filha Ti Marcolino, com o cesto da parva à cabeça, já o Sol andava na coroa do velho carvalho.


António Sá Gue

(Continua...)

sábado, 26 de março de 2011

Quadros da transmontaneidade (38)



Outras ceifas: o caminho

Para chegar, seja onde for, há sempre um caminho a percorrer. Esta bem podia ser a lei da gravidade desta humanidade mundana. Este, o da segada, era feito durante a noite, bem de madrugada, ainda com a aurora a espreguiçar-se para Além-dos-Montes. Quando se levantava a brisa da antemanhã, que habitualmente arrepiava os corpos, já as bestas de carga, humanas e não-humanas, caminhavam aos tropeções nas pedras que as águas do Inverno tinham desenterrado.
O poldrão do Ti Marcolino já não o fazia a pé. Escarranchado sobre a albarda, também ela já esborcelada pelos anos de uso, remoía os sentimentos sentado no lombo do macho. Os segadores, que chamou à jeira, não fugiram à regra da Ordem, também eles com o “sol-nado” já teriam que estar bem para lá da Penacurva. Neste momento, não passavam de uma silhueta, lá mais à frente, só a luz argêntea mas indirecta da Lua os iluminava. Iam calados, apenas o trotear do macho ecoava na noite.
Chegaram ao tapado.

(Continua...)

António Sá Gué

domingo, 20 de março de 2011

Quadros da transmontaneidade (37)

A ceifa

“Eu também fui segador” – rememorava o Ti Marcolino – “também eu levei a eito longos dias de segada, sem descanso, vergado pela fome nos agostados tapados da Resanha. Também eu limpei muitas vezes o suor da testa, também ela refegada, com o encardido lenço tabaqueiro que me envolvia o cachaço e que, ainda agora, mantém a forma ondulada das searas e a rusticidade afiada das fragas. Também eu saboreei o doce descanso à sombra do velho carrasco, que já só existe no saco de grão bafiento da minha memória. Também eu medi dezenas de vezes com o olhar a largura da courela, sempre em conta de três, três longos regos, porque só a tríade integra a unidade deste dualismo humano do qual não me consigo libertar.”

António Sá Gué

terça-feira, 15 de março de 2011

Quadros da transmontaneidade (36)

As malhas: fazer a meda

Fazer a meda era arte de pedreiro. Fazer a meda era coisa para sapiência de mestre. Fazer uma meda era um acto de cooperação e coordenação entre o mestre e o aprendiz que lhe ia atirando os pesados molhos, um a um, como se fossem pedras de uma catedral que, pouco a pouco, também ela se ia erguendo aos céus e assumia forma redonda, como o mundo que ansiava compreender. O mestre sempre de joelhos, e com a sabedoria de mão calejada, assentava-os com a facilidade de quem apreendeu tudo num instante, como se soubesse, desde sempre, o local que lhes competia.
Qual catedral que se mantém erguida pela equação matemática que se desconhece! Qual geometria que explica a sua beleza! As medas, sei hoje, foram as catedrais da minha infância, os contrafortes da minha rudeza, os seus recantos a felicidade pueril e indizível que carregarei aos ombros até ao fim dos meus dias.


António Sá Gué

P.S.: Com um abraço para o amigo Nelson.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Quadros da transmontaneidade (35)

Há ainda uma infinidade de “quadros” e “sentimentos”, que carrego no meu subconsciente e que reconheço como fazendo parte de uma cultura de um povo, e que, para o bem e para o mal me enformaram.
Agora, quando os releio aqueles que aqui editei, embora veja neles peças de uma cultura que todos nós transmontanos, de uma maneira ou outra, carregamos, mas, dizia eu, embora os considere como tal parecem-me peças desgarradas, sem nexo. É como se não se integrassem, como se estivessem descontextualizados. Por isso, decido aqui concluí-los, ou seja, talvez os continue a trazer ao meu consciente, pouco a pouco, talvez os continue a passar para o papel, mas ficarão à minha guarda até me parecer que estão todos eles integrados, até me parecer que, no seu todo, já podem dar uma imagem, mesmo que pálida, do tal conceito que chamamos “cultura transmontana”, se é que existe.


António Sá Gué

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Quadros da transmontaneidade (34)

A matança: o abrir

Com perícia, e saber, desferiu dois golpes profundos de alto abaixo. Começou no queixal e só terminou junto ao rabo, que o Ti Madanelo já tinha cortado e mandara assar nas brasas da fogueira onde continuavam a crepitar os rijões e os toros de castanheiro. A fatia da barriga saiu inteira, exactamente como se fosse a tampa de uma lata de sardinhas de conserva.
- Tem bons fígados – disse, em tom de chalaça, o Ti Joaquim Cortador depois de avistar o fígado e não encontrar sinais de doença.
De seguida excisou os bofes que lavou com água corrente. Extraiu a bexiga e deu-a aos raparigos, que por ali andavam, e fizeram dela bola de futebol. Pediu que lhe trouxessem o tabuleiro onde despejou as tripas.
- Pronto!… Já tendes com que vos entreter – disse, maliciosamente, às duas mulheres que pegavam no tabuleiro, uma de cada lado.
E assim foi, durante mais de duas horas, ali estiveram de cócoras, na abrigada do palheiro, a desfaze-las, como se dizia, para significar a extracção dos interstícios untosos que ligam as diferentes circunvoluções intestinais.
Já o animal pendia na viga da adega, já o sarrabulho estava sobre a mesa e o vinho corria nas goelas, quando elas chegaram da tarefa delicada, que só consideravam completa depois de serem reviradas e limpas.

António Sá Gué