domingo, 3 de abril de 2011

Quadros da transmontaneidade (39)


Outras ceifas: a manhã

Quando o Ti Marcolino desmontou do macho, deixando-se escorregar albarda abaixo, já os jeireiros protegiam aos dedos de eventuais naifadas da seitoura com os grossos dedais de atanado e, sempre com chalaças pelo meio, decidiam quem tomaria o primeiro eito.
Ainda ele não tinha chegado com os pés ao chão e já o macho, sempre irrequieto, se desviava para derriçar um tufo de espigas que se lhe metiam olhos dentro.
- Rais te partam, demónio dos quintos dos infernos – maldisse o Ti Marcolino ao mesmo tempo que se equilibrava e lhe puxava o rabeiro com força. Prendeu-o, de rédea curta, à carvalheira que ficava à mão direita do portelo.
O Sol já lá vinha, os jeireiros, com o barulho de corte das seitouras e o roçagar das espigas metidos nos ouvidos nem escutaram a praga do Ti Marcolino. Havia que aproveitar a fresca, antes que o Sol ameaçasse queimar tudo e todos, antes que o tapado se transformasse numa das portas infernais de Dante.
O Ti Adérito prensado entre os outros, ao sentir as espigas a tocarem-lhe nas nalgas desencadeado pelos movimentos mais impetuosos do Ti Albano, que vinha no seu encalce, em boa verdade ao sentir-se acossado pelo seu persegudor desencadeou a primeira picardia:
- Estás folgado… – acusou ele – passa p’rá frente.
Riu-se. Mas nem por isso diminui a frequência dos golpes da seitoura, nem por isso deixou de envencilhar com destreza as mancheias que se iam acumulando na mão esquerda e ia colocando atrás de si. O Ti Joaquim, afamada na arte, continuava mais à frente alheio do despique dos seus seguidores.
E, pouco a pouco, seitourada após seitourada, iam-se desenhando os cortes, o restolho ia dando lugar ao ondular encantado da seara. As gavelas, montes de trigo, militarmente alinhadas iam demarcando os eitos já segados, sempre no mesmo sentido, sempre a aproveitar do declive do terreno, sempre a começar no baixos e acabar nos altos.
Quando apareceu a Isabel, a filha Ti Marcolino, com o cesto da parva à cabeça, já o Sol andava na coroa do velho carvalho.


António Sá Gue

(Continua...)

3 comentários:

Júlia Ribeiro disse...

Ao Sá Gué só posso agradecer por nos trazer aqui estes textos magníficos.

Obrigada, Amigo
Júlia


PS - Amigos Blogueiros:
Vou estar ausente de amanhã até final do mês. ( Estou a precisar muito de termas, para ver se afasto o caruncho que está a moer-me ... )

Abraços para todos e um abração para o Nelson.

Júlia

Anónimo disse...

«Havia que aproveitar a fresca, antes que o Sol ameaçasse queimar tudo e todos, antes que o tapado se transformasse numa das portas infernais de Dante» - simplesmente sublime!
Bastaria este naco, entre outros, em que o autor se consegue alçar aos píncaros da forma erudita, para logo a seguir deslizar até ao regionalismo que só a nossa gente entende, dizia, bastaria este excerto para vermos que estamos em presença de escritor de primeira água. Estes "quadros de transmontaneidade" prometem vir a ser obra de referência, que mais não seja de modos a fixar esse "mundo que nós perdemos", com a devida vénia ao sr. Peter Laslet...
Abraço a todos, em especial ao Sá Gué e Drª. Júlia.
N.

António Sá Gué disse...

Caro Nelson!

Penso que o facto de textos como estes terem o condão de fixar um "determinado mundo", "uma determinada consciência colectiva", como queiras, nessa razão, creio, reside uma das grandezas da literatura.

Abraço.