domingo, 17 de abril de 2011

Quadros da transmontaneidade (41)

Outras ceifas: ainda a tarde

Uma brisa, muito leve, levantou-se por momentos, e eles, os pecadores daquela Divina Comédia infernal, por momentos não se vergaram sobre a tríade de regos que, em cada seitourada desferida, parecia tornar-se ainda mais longa. Ali se mantiveram erguidos, a aliviar as culpas, a saborear aquele breve e doce encanto. Ali permaneceram com a zoeira da cigarra na nascer-
-lhe na alma, a encher-lhe os ouvidos, como se fosse praga omnipresente em todos os círculos. Por momentos aliviaram a rigidez muscular, enquanto olhavam o horizonte ondulado e escutavam a cantilena repetitiva do cuco que, a Zabelinha contava em segredo, para melhor entender o futuro e conhecer o número de anos que teria de ficar solteira.
- Ainda não é tempo de atar? – instou o Ti Marcolino, quando viu o Sol a querer afocinhar nos montes.
- Sim, sim vão sendo horas - respondeu o Adérito.
E antes de se dirigirem aos eitos, desenhados pela regularidade, quase arrepiante, das gavelas que se tinham ceifado ao longo do dia, dirigiram-se à carvalheira onde o macho continuava preso. Beberam ambos pela mesma cântara de barro, limparam os beiços com as costas das mãos, e ataram ao cinto um bom manhuço de vencelhos que debaixo da albarda da animália, escondidos dos tórridos raios solares, ainda permaneciam húmidos.
Braçada após braçada, as gavelas iam sendo abraçadas uma a uma até adquirirem tamanho de molho, e ainda com as praganas metidas no pescoço eram atados por mãos musculadas que, auxiliadas por joelhadas firmes e secas ajudavam a dar-lhe a sua forma final.
- Não vem lá água! – acautelou o Ti Marcolino quando viu surgir no horizonte uma nuvem mais negra.
Para bom entendedor meia palavra basta, todos perceberam que antes de acabar o dia era preciso juntar os molhos, construir o rilheiro porque caso surgisse algum aguaceiro inoportuno e indesejado sempe ajudaria a proteger tão preciosa colheita.


António Sá Gué

1 comentário:

Júlia Ribeiro disse...

Amigo Sá Gué:

O meu deslumbre continua...

Júlia