A abertura da sessão coube ao Presidente da Câmara de Torre de Moncorvo, Engº. Aires Ferreira, contando com a presença da Chefe de Divisão de Cultura e Turismo, Drª. Helena Pontes e do Engº. Jorge Afecto, amigo do autor, que fez a apresentação do livro, tendo começado por evocar o conhecimento entre ambos, desde o tempo em que cumpriu o serviço militar. Na verdade, o escritor António Sá Gué, nome literário de António Lopes, é, como sabemos, também um ilustre militar de carreira, ao presente com a patente de tenente-coronel.
Pela excelente abordagem efectuada por Jorge Afecto, deu para se entrever o conteúdo da obra - partindo de uma viagem realmente feita pelo autor em 2008, através do Caminho de Santiago. A partir dessa entra-se numa viagem outra, de cariz simbólico, esotérico e iniciático, em que o seu alter-ego, na pessoa de um Professor (antigo funcionário do "ministério do consumo", departamento da Obrigatoriedade), vai discorrendo sobre o que é e o que deveria ser uma certa "escola" que aqui se pretende que seja o Caminho e a Escola da vida. Cada etapa do caminho suscitou uma série de reflexões, pessoais, intimistas, mas na verdade dirigidas a um grupo de "alunos" ou "aprendizes". São 13 etapas, equivalentes a 13 degraus, no livro correspondentes a 13 capítulos, e, como de professor se trata, abertos com 13 "sumários", onde se explanam as respectivas lições, de uma escola que desde logo se intui que não é uma escola de crianças, na acepção normal do termo.
A mística do Caminho (de Santiago) vai-se revelando na atenção aos símbolos, monumentos, lendas e toda a magia que o envolve e, por consequência, envolve os espíritos que o percorrem, naturalmente os capazes dessa apreensão. Aí nos aparecem Rolando (o da célebre canção medieval) nos desfiladeiros de Roncesvalles, onde, moribundo depois da batalha, quebra num penedo a sua fiel espada, a Durindana... A prossegue a caminhada em demanda do mítico Graal, quiçá o ideal da perfeição a atingir por cada um...
Segundo o autor, este é um livro que se situa no plano dos princípios. Citando Kant, o objectivo último é o caminho da Liberdade. Discorreu entretanto sobre o caminho físico, o da Peregrinação jacobeia, informando que este é um caminho pré-cristão, redescoberto na Idade Média e se continua a fazer até aos nossos dias, numa busca da espiritualidade. Neste aspecto, o Caminho é uma escola de segredos da transformação da matéria, onde pontuam as igrejas românicas (e posteriores), pontes, etc., incluindo lápides com estranhos sinais que parecem pertencer a chefes de guildas de pedreiros; do mesmo modo o "professor" Daniel procura aí inspiração para a transformação das consciências, base da verdadeira revolução.
Terminou Sá Gué a sua intervenção com uma referência especial à povoação de Cebreiro, onde Wagner se terá inspirado para escrever a ópera "Parcifal". E foi ao som de Wagner que o autor leu o poema final, um hino, decerto inspirado no hino ao Sol do herético faraó Akhenaton, com que termina o livro: "Tu, que todos os dias desces em ti, / que pairas no abismo,/ que te perdes,/ mas renasces, /mostra-nos os truísmos mais banais.// Tu, que contas o tempo./ que és vida e morte,/ Princípio e Fim, / Luz e trevas, /simultaneamente/ mostra-nos o caminho.// Tu, navegante ousado, /torrente ludra,/delta pacífico,/conhecedor de todas as coisas/ agitador de consciências, /Mostra-nos a verdade.// tu que verdadeiramente nasces para todos,/ mesmo para gente que nunca existiu,/ tu, conhecedor do tamanho do mundo,/ Mostra-nos a verdadeira consciência social./ Tu, grande espírito indomável, que nos iluminas, /Tu, Delta luminoso, sobreviverás além da morte./ Nós, meros mortais, brevemente voltaremos ao pó/ E navegaremos, contigo, para sempre, neste mar da vida."
Encontro de escritores do concelho, na hora dos autógrafos: o autor e a Drª. Isabel Mateus, ambos ilustres colaboradores deste blogue
Este "Tu" a quem se dirige, é, evidentemente, o Sol, a Luz e a Vida que emanam o disco solar Aton (que Akenaton associa ao deus único, rompendo assim com o politeísmo, e inaugurando a via monoteísta, pretendem alguns que inspirado no deus dos Hebreus, então escravos do Egipto), como tal a Divindade e supremo arquitecto do universo, como se intui da alusão ao "delta luminoso". Interessante que se termine com a imagem de um barco que transporta a mensagem, no fim do Caminho/Mundo, para além do (ultreia) mar, para o caminho real inca (cápac ñan), onde, efectivamente os cultos solares tiveram também lugar, como bem o demonstra a chamada "pedra do sol", no ponto mais alto da cidade perdida de Machu Picchu (revelada em 1911, precisamente há 100 anos). Há quem pense que o segredo maior dos Templários seria o conhecimento da existência de terras além-mar, e que a procura do fim do mundo - a Finisterra galega - era a busca do caminho do Sol, ou também do caminho das estrelas, através dessa estrada sideral, a Via Láctea, a galáxia onde fica a nossa casa, a Terra - aliás, a palavra "Compostela" advém de "campus stellae" (campo de estrelas), onde o sepulcro do apóstolo (Sant'Iago, ou Iacob, ou Jacob) se terá manifestado através de luzes... Não será também por acaso que o protagonista do livro se chama Daniel, nome de Profeta, que aqui talvez nos queira deixar a profecia de um novo mundo, mais além - sendo este o significado de "Ultreia" (saudação antiga dos peregrinos de Santiago, e que bem conhecemos da música folk galega, divulgada pelo grupo musical do mesmo nome).Que nos perdoe o autor o atrevimento por estas conjecturas e extrapolações finais, resultantes da nossa leitura pessoal. - Esperemos que cada qual faça a sua, pois o livro é como uma pedra que salta da mão do autor e vai bater não se sabe onde...
Texto: N.Campos; Fotos: João Pinto Vieira Costa
8 comentários:
Excelente. Parabéns Nelson.
Jorge.
Meu bom e caro amigo,
Jornalismo deste, reportagem com esta qualidade, já não se encontra em lado algum...na actualidade.
Percebe-se a cultura, o saber do jornalista (vai sem aspas, por que, os bons jornalistas de antanho eram soberbos eruditos: Afonso Praça, Augusto Abelaira, Fernando Assis Pacheco, Fernando Piteira Santos, Rogério Rodrigues,José Cardoso Pires e etc.)Nelson Rebanda.
Não estamos só (que já é muito) perante uma soberba recensão do livro em questão, mas de uma estupenda reportagem de um evento cultural maior em Torre de Moncorvo.
Uma pequena discordância.
Amen-hotep IV, casou com a lindíssima e celebérrima Nefertiti, 1364-1347 a.c.
Este decide opor-se ao grande Deus Amon (incorporado no seu próprio nome: "Amon é misericordioso") e reconverter-se em Akhenaton, "esplendor de Aton", Deus Solar.
Transformando o casal faraónico em irradiação do Deus
luminoso.
Diversas explicações têm sido produzidas para este fenómeno (politicas, comerciais, imperiais...), mas parece que a única válida - liga-se às características da personalidade deste Faraó, como teólogo de convicções íntimas e reformador intransigente.
Deslocou-se de Tebas, capital desta dinastia, onde sedeava todo o complexo panteão egipcio e deslocou a capital para Akhetaton (horizonte de Aton)terra virgem do ponto de vista da religião.
Esta experiência religiosa não sobreviveu ao seu "inventor".
Aton cuidava dos vivos, exclusivamente. E quem cuidaria dos mortos?
Sabe-se, sabe o Nelson, a importância que tal tinha na vida dos egipcios.
Poucos traços foram deixados por este Faraó. A sua arquitectura foi destruida,limpa.
Produziu, ainda assim, uma revolução na escrita, nas artes, na pintura, designadamente.
Deixou marcas num Deus com dimensão universal, Ptah, mas pouco mais.
Quanto ao carácter "monoteista" que se lhe empresta... Não parece estar provado que tal tenha sido a intenção do Faraó.
A influência de Javé dos Judeus? De todo.
Sabe-se que, nesta data,os egipcios, o império, ocupava Jerusalém, mas sabe-se que a Amarna "foi, por um lado,a negação da tradição e a primeira religião fundada da história (antes do javeísmo mosaico, do budismo e do cristianismo)".
Peço desculpa pelo prosear.
Aceite-o como modestíssimo contributo ao seu muito saber.
Um enorme abraço,
Albergaria
Caro Sá Gué:
Mais ums vez, parabéns.
Já encomendei o seu livro, aqui na livraria da minha rua.
Um grande abraço
Júlia
Nelson:
Não me esqueci. Mas cliquei em "publicar" antes de lhe dizer que o seu texto é magnífico. O que eu aprendo com o que o meu Amigo escreve !
Parabéns e obrigada
Júlia
Olá Júlia!
Oxalá goste. :-)
De facto um livro nunca se sabe onde vai parar. E o engraçado(se é que tem alguma graça), tendo em conta as impressões que me vão chegando deste ou daquele leitor é verificar do lado de cá, como as palavras nos tocam de diferentes formas, provavelamente devido à subjectividade inerente que possam ter, mas também pela nossa personalidade, pelo nosso saber e pala forma de caminhar.
Abraço a todos.
Caríssimos Amigos, o aplauso deve ir todo para o autor, a quem cabe o mérito. Trata-se de um livro inquietante, a merecer uma recensão que vá além do mero apontamento à guisa de notícia que intentei - ainda que de jornalista nada tenha (nem encartado, nem por encartar), pelo que desconto a generosidade do Amigo Albergaria. Na verdade, caro António, era de esperar que me tocassem mais as referências de pendor histórico e archeológico aí contidas, a par de todo o simbólico e do imaginário, que são tb tema que deveras me interessa. Tirei algumas notas e vale o facto de ainda não ter tido tempo de terminar a leitura, e nessa altura te encaminharei meu modesto parecer, pois a recensão já foi de certo modo feita no intróito, pelo Beto Areosa, e na apresentação, pelo Jorge Afecto.
Quanto ao "caso Akenathon" (que começou, de facto, por ser Amen-hotep IV), como bem relembra o José Albergaria, muito haveria a dizer. Para muitos, é o período mais brilhante (e não k isso tenha a ver com o Sol/Aton) da cultura egípcia. Fique apenas com esta minha confidência: o que fez despoletar em mim o interesse maior pelas antiguidades egípcias e arqueologices em geral, foi um pequeno livrinho que um dia requisitei (sei q foi por volta de 1977) na biblioteca itinerante da Gulbenkian que vinha então a Moncorvo, livrinho esse q se intitulava "A sombra do faraó", de um certo Lavolle (era um pequeno romance histórico para os jovens, em formato de livrinho de bolso). Fiquei fascinado pela história do faraó "herético" e da sua "sombra" um antigo escravo que o tinha salvo e q ele depois libertou e fez seu ministro e conselheiro (chamado Jama). Mais tarde (nos anos 80) consegui o dito livrinho num alfarrabista do Porto e voltei a relê-lo. Andava tão estragado que há dois anos o mandei encadernar, com título e debruados a ouro, na lombada, só para ver a importância do livrinho para mim (é uma espécie de moedinha nº. 1 do tio Patinhas, na minha biblioteca destas temáticas). Escusado será dizer que a partir daí tentei aprofundar a história desse faraó e da sua utópica cidade do Horizonte de Aton (depois devorada pelo deserto e redescoberta no séc. XIX, na zona de um lugarejo chamado Tell el Amarna, razão por que se chamaou a esse fugaz reinado, o período de Amarna). Pelos visto os bonzos de Amon não toleraram a utopia e a ousadia... Seguiu-se a "damnatio memoriae" típica destes casos, em que os vencedores procuram sempre apagar o nome daqueles que odeiam, não lhes bastando sair-se vitoriosos, procurando substituir-se, ou, no caso, restabelecer-se.
A dúvida que permanece é sobre quem influenciou quem: alguns pensaram que foram os hebreus que se inspiraram na ideia de Deus único de Akenathon; outros que não, que foi ao contrário. Mas como o especialista em religiões é o nosso amigo Albergaria, devolvo-lhe a palavra, com um abraço,
N.
Caro e bom amigo,
É sempre um gosto, um prazer, ouvi-lo e lê-lo.
Sou, e serei sempre, modesto aprendiz.
Sou um dos seus muitos admiradores e por si tenho consideração e respeito.
Como gosta de dizer o Rogério, nossa comum referência, "sábio não é o que muito sabe, mas aqueloutro que sempre quer aprender".
Gostei muito, mesmo muito, do seu texto, mas, como ando de roda das religiões do livro, as monoteistas, e tinha tropeçado, faz pouco tempo, na ainda hoje polémica questão do "monoteismo" de Akenathon...e, por isso, só mesmo por isso, escrevinhei aquele comentário sem qualquer préstimo.
Ou, melhor dito, o único valor que lhe empresto: permitir conversar e aprender, sempre, com meu amigo Nelson Rebanda.
Três fortes e fraternos abraços,
José Albergaria
NB - O que importa dizer.
O seu comentário ao livro Ultreia suscitou-me interesse em lê-lo. O Rogério falou-me já e, também, muito bem dele.
caríssimo Albergaria,
O respeito, admiração e Amizade são mútuos e sinto-me mt honrado, pois sei que tem um saber e um historial de vida que supera em muito o que este "servus dei" alguma vez possa ter feito. Mas a evocação de Akenathon, quer pelo Sá Gué (na Ultreia), quer nas suas oportunas palavras, tocou-me bastante, porque foi uma história que me tocou, nas leituras adolescentes. Se "somos os livros que lemos", como disse J.L. Borges, essa foi uma das minhas primeiras leituras marcantes (e o meu Mtº Obrigado ao Sr. Calouste Sarkis Gulbenkian, a quem devo muito do pouco que sei, nessa construção dos meus alicerces numa terra onde não havia Bibliotecas, nem se imaginava sequer q um dia viria a haver uma coisa chamada "internet"). E o curto reinado de Akenathon não foi marcado apenas esse contributo teológico: foi-o na Arquitectura, com uma das primeiras, senão a primeira, cidade planificada, e nas Artes em geral, com a pintura e escultura realista (às vezes até a tocar a caricatura, como as representações dos lábios grossos e ventre proeminente do faraó), afastando-se da representação hierática e idealizada, de que o expoente máximo é o fascinante busto da Nefertiti, que os alemães trataram de surripiar para o Museu de Berlim... Mas o que mais me cativou na história de Akenathon foi o facto de ser um lírico (talvez para os outros um louco) que chegou ao Poder e procurou romper com todas as convenções e pagou por isso. Depois dele, talvez só o rei Luís II da Baviera (este seguramente mais louco e menos "produtivo", a não ser a nível dos seus famosos castelos românticos9, tb com fim trágico (q inspiraram páginas sublimes ao "Bernardo Soares", do Livro do Desassossego).
Mas não nos desviemos de "Ultreia" do Sá Gué. Vale a pena ler. Anote-se aí uma subtileza gráfica: há textos de um grafite carregado, mas ligeiramente mais claro que o texto a preto (uma originalidade que achei interessante), em que o texto mais claro é o relato de viagem real, pelo caminho (físico) de Santiago; o que está nos caracteres a preto, são as divagações "a propos de" do autor em redor de problemas dos nossos dias, ou as inquietações espirituais, ou propostas de reforma da nossa sociedade, com algum (muito, às vezes) idealismo, um pouco à guisa de Akenathon. Mas a revolução que o professor/profeta Daniel aí propõe não é uma revolução feita nas ruas, mas sim nas consciências de cada um - o que me trouxe à lembradura um grito de Leo Ferré num concerto realizado no Porto, por volta de 1984 (ou 85?) em que dizia exactamente isso: "la revolution ne devra pas être faite en les rues, mais dans la tête de chacun!" - foi mais ou menos isto (que o meu francês é "mauvais", e perdoe-se-me alguma calinada).
abraço,
N.
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