domingo, 10 de abril de 2011

Quadros da transmontaneidade (40)

Outras ceifas: a da tarde

O Sol, serenamente, continuava na sua ascensão até ao zénite. Lá do alto, na sua supina venerabilidade, mostrava-se incapaz de revelar compaixão pelos mortais que ali continuavam a repetir gestos incessantemente: seitourar, sempre em golpes de três, envencilhar e pousar, seitourar, envencilhar... Ali continuavam agarrados a um sentimento de humildade que desafia a própria santidade, presos a uma sapiência de amor pela fecundidade da terra que dilui a fronteira da existência e não-existência humana.
Já não havia suor que arrefecesse os corpos, nem água que matasse a sede. Não fora a cântara de água que a Zulmira trouxera embraçada e assente na anca, quando veio trazer a janta, já devorada à sombra do carrasco, não tardariam a surgir miragens insanas na tremulina que surgia no horizonte. Preso pelos arejados chapéus de palhinhas de abas largas, mercados na feira dos 23 na vila, o lenço tabaqueiro avermelhava nos cachaços tisnados e, em movimentos cíclicos, mãos ásperas como o restolho, levavam-no à testa e absorvia o suor. O sal, que nem só tempera, corroía e descolorava, pela constante evaporação, os costados e os sovacos dos andrajos garridos daquelas almas pecantes que, naquele vórtice infernal, cumpriam pena.
As sombras alongavam-se.

António Sá Gue

(Continua...)

2 comentários:

Anónimo disse...

Até se sente o calor e a moinha (bem, esta era mais na eira). Era duro, muito duro!! - Por isso, daí o dito dos lavradores, depreciando as outras profissões artesanais:
"Alfaiates não são homes,
Sapateiros também não;
Homes são os lavradores
que enchem as tulhas de pão"
(quadra popular trasmontana, recolhida em A. Pires Cabral, O diabo veio ao enterro, 3ª ed., 2010)

O ritmo deste trabalho (cíclico, como um suplício de Sísifo), renovava-se em cada ano, desde tempos neolíticos... Quem aqui o descreve, de forma tão vívida, denota que ainda o viveu ou conheceu de perto, apesar de ter sido na sua geração que surgiram as máquinas ceifeiras e debulhadoras. Para a juventude de hoje isto é completamente "Chinês"! - Eu também fui dos últimos que vi isto, embora o trabalho de foice estivesse apenas circunscrito a uma tapada lá para o Vale das Vinhas, numa terra de meu avô, para os lados do concelho de Mogadouro. Depois passou a vir a máquina, até que o ciclo do cereal foi passando, o avô morreu, tudo acabou... Mas será que ainda não teremos que reaprender a Agricultura, essa actividade tão nobre quanto tão dura e tão desprezada, da qual meu avô dizia (desconhecendo que A. Herculano o dissera já no séc. XIX) que era a arte de empobrecer alegremente?....
Para não ter que estar sempre a felicitar o autor, após cada quadro, cada qual melhor que o anterior, limito-me a pôr aspas no que já disse.
Abraço,
N.

Júlia Ribeiro disse...

Depois do que o Sá Gué escreveu - pérolas, verdadeiras pérolas - e do que o Nelson registou na sua profunda análise , só me resta dizer "obrigada " a ambos, porque fico sempre mais rica.

Júlia