domingo, 13 de fevereiro de 2011

Quadros da transmontaneidade (34)

A matança: o abrir

Com perícia, e saber, desferiu dois golpes profundos de alto abaixo. Começou no queixal e só terminou junto ao rabo, que o Ti Madanelo já tinha cortado e mandara assar nas brasas da fogueira onde continuavam a crepitar os rijões e os toros de castanheiro. A fatia da barriga saiu inteira, exactamente como se fosse a tampa de uma lata de sardinhas de conserva.
- Tem bons fígados – disse, em tom de chalaça, o Ti Joaquim Cortador depois de avistar o fígado e não encontrar sinais de doença.
De seguida excisou os bofes que lavou com água corrente. Extraiu a bexiga e deu-a aos raparigos, que por ali andavam, e fizeram dela bola de futebol. Pediu que lhe trouxessem o tabuleiro onde despejou as tripas.
- Pronto!… Já tendes com que vos entreter – disse, maliciosamente, às duas mulheres que pegavam no tabuleiro, uma de cada lado.
E assim foi, durante mais de duas horas, ali estiveram de cócoras, na abrigada do palheiro, a desfaze-las, como se dizia, para significar a extracção dos interstícios untosos que ligam as diferentes circunvoluções intestinais.
Já o animal pendia na viga da adega, já o sarrabulho estava sobre a mesa e o vinho corria nas goelas, quando elas chegaram da tarefa delicada, que só consideravam completa depois de serem reviradas e limpas.

António Sá Gué

2 comentários:

Júlia Ribeiro disse...

Olá, Sá Gué:
O abrir o porco era aquele momento mágico em que mirávamos os "por-dentros". Aquele momento em que nos remirávamos: o coração, olhai que força ele tinha! os fígados, que grande fel ! cuidado, tem de sair inteirinho; os bofes, são os pulmões? pois claro; o estôgamo , vai ser p'ro palaio; os rinses, por aqui passa o mijo; a tripalhada fina e grossa, por aqui passa a m...
"Abre o teu porco e mira o teu corpo" . "Tirante alma tudo é carne" .
Era o ritual e uma lição de anatomia - à mistura com uma lição de respeito pelos animais - dada aos raparigos.

Obrigada, Sá Gué, por estes esplêndidos quadros.

Abraço,
Júlia

Anónimo disse...

Obrigada, Sa Gue e Julia, por estes dois magnificos quadros!

Um grande abraco,

Isabel

P.S. Desculpem, mas o meu teclado nao me permite acentos.