Ajoujados
Este quadro é um quadro que atravessou transversalmente várias gerações de toda a Terra Quente, creio até ser transversal a todo o Nordeste Transmontano. Esta história ouvia contar muitas vezes, ainda jovem, e creio que há ainda gente em vida que sofreu na pele com ela, ou com ele, com a falta de senso, a irresponsabilidade, mesquinhez, sei lá como a hei de caracterizar… mas que à luz desse tempo até poderá ser desculpável, digo eu. Seja como for, essa alma transmontana, que estará sempre incompleta, e que aqui tento fixar, ficaria ainda mais incompleta se não fosse registada. E reza a história que terá sido mais ou menos assim:
Naquele tempo o Estado para impor a lei recrutava gente do povo, como ainda agora faz, dava-lhe uma farda, autoridade q. b., e incumbia-os da nobre missão de zelar pela ordem e o bem-estar das gentes, sem os formar devidamente.
As aldeias viviam isoladas, agarradas aos costumes que, ao longo do tempo, criavam raízes profundas nas populações e com eles conseguiam dirimir todos os problemas que nesse viver intimo e solidário acabavam sempre por surgir. Impor leis, mesmo sendo bem intencionadas, sem a devida explicação pode sempre descambar em problemas. Esta bem podia ser a moral, deste quadro da transmontaneidade, que não está assim tão distante quanto possam pensar, e dirijo-me especialmente aos mais novos.
A autoridade sediada normalmente na Vila, neste caso em Moncorvo, patrulhava à ordem do comandante as aldeias da sua responsabilidade. Nesse dia, a patrulha terá chegado à Lousa, logo de manhã cedo, e os agentes de autoridade, zelosos, se calhar aborrecidos pela longa caminhada sempre subir que tiveram de fazer, ainda noite, se calhar a cumprir as ordens exactas do seu comandante, provavelmente, mais preocupado com a carreira dele próprio do que propriamente o Servir, desataram a multar todos, a torto e a direito. Ora era o cão que não tinha açaime, as pitas que andavam na rua, o porco que devia estar na cortelha e não a fossar nas canelhas, a taberna que estava aberta fora de horas… Sei lá, terá sido neste ambiente puramente aldeão, que a patrulha da GNR zelosa do seu trabalho, desatou a passar recibos de “oitenta e coroa” à ti Zulmira, à ti Marquinhas, a todas quantos não cumpriam a lei da República, que ficava distante, como atrás se disse.
Os homens, a essa hora da manhã, poucos andavam por ali, só os velhos, as crianças e as mulheres que, em permanentes “quefazeres”, davam vida às pedras e às ruas lamacentas da chuva dos dias antecedentes.
Perante tal injustiça, a ti Zulmira, mulher desenvolta, entroncada, sem pedir autorização a ninguém, mete-se caminho fora, desce os escarrabouçais que as ladeiras impunham e vá de chamar o ti Adriano, o seu home, que andava na lavra da vinha, lá para os lados da Trapa. Escusado será dizer quando a viam passar esbaforida, foi contando a todos quantos lhe perguntavam o “assucedido” e o sentimento de injustiça que vivia passou a fazer parte de todos.
Desconhece-se se houve toque a rebate, o que se sabe é que alguém teve a ideia de os julgar sumariamente.
- Ajoujá-los, vamos ajoujá-los – disse alguém.
Se melhor o pensaram, melhor o fizeram. Prenderam-nos ao jugo, como se faziam ao vivo, aos animais que tanto estimavam. O fim da história não sei, mas não me admira que todos os envolvidos fossem degredados para África.
António Sá Gué
P.S.: Boas férias