terça-feira, 12 de julho de 2011

Quadros da transmontaneidade (52)

Ajoujados

Este quadro é um quadro que atravessou transversalmente várias gerações de toda a Terra Quente, creio até ser transversal a todo o Nordeste Transmontano. Esta história ouvia contar muitas vezes, ainda jovem, e creio que há ainda gente em vida que sofreu na pele com ela, ou com ele, com a falta de senso, a irresponsabilidade, mesquinhez, sei lá como a hei de caracterizar… mas que à luz desse tempo até poderá ser desculpável, digo eu. Seja como for, essa alma transmontana, que estará sempre incompleta, e que aqui tento fixar, ficaria ainda mais incompleta se não fosse registada. E reza a história que terá sido mais ou menos assim:

Naquele tempo o Estado para impor a lei recrutava gente do povo, como ainda agora faz, dava-lhe uma farda, autoridade q. b., e incumbia-os da nobre missão de zelar pela ordem e o bem-estar das gentes, sem os formar devidamente.
As aldeias viviam isoladas, agarradas aos costumes que, ao longo do tempo, criavam raízes profundas nas populações e com eles conseguiam dirimir todos os problemas que nesse viver intimo e solidário acabavam sempre por surgir. Impor leis, mesmo sendo bem intencionadas, sem a devida explicação pode sempre descambar em problemas. Esta bem podia ser a moral, deste quadro da transmontaneidade, que não está assim tão distante quanto possam pensar, e dirijo-me especialmente aos mais novos.
A autoridade sediada normalmente na Vila, neste caso em Moncorvo, patrulhava à ordem do comandante as aldeias da sua responsabilidade. Nesse dia, a patrulha terá chegado à Lousa, logo de manhã cedo, e os agentes de autoridade, zelosos, se calhar aborrecidos pela longa caminhada sempre subir que tiveram de fazer, ainda noite, se calhar a cumprir as ordens exactas do seu comandante, provavelmente, mais preocupado com a carreira dele próprio do que propriamente o Servir, desataram a multar todos, a torto e a direito. Ora era o cão que não tinha açaime, as pitas que andavam na rua, o porco que devia estar na cortelha e não a fossar nas canelhas, a taberna que estava aberta fora de horas… Sei lá, terá sido neste ambiente puramente aldeão, que a patrulha da GNR zelosa do seu trabalho, desatou a passar recibos de “oitenta e coroa” à ti Zulmira, à ti Marquinhas, a todas quantos não cumpriam a lei da República, que ficava distante, como atrás se disse.
Os homens, a essa hora da manhã, poucos andavam por ali, só os velhos, as crianças e as mulheres que, em permanentes “quefazeres”, davam vida às pedras e às ruas lamacentas da chuva dos dias antecedentes.
Perante tal injustiça, a ti Zulmira, mulher desenvolta, entroncada, sem pedir autorização a ninguém, mete-se caminho fora, desce os escarrabouçais que as ladeiras impunham e vá de chamar o ti Adriano, o seu home, que andava na lavra da vinha, lá para os lados da Trapa. Escusado será dizer quando a viam passar esbaforida, foi contando a todos quantos lhe perguntavam o “assucedido” e o sentimento de injustiça que vivia passou a fazer parte de todos.
Desconhece-se se houve toque a rebate, o que se sabe é que alguém teve a ideia de os julgar sumariamente.
- Ajoujá-los, vamos ajoujá-los – disse alguém.
Se melhor o pensaram, melhor o fizeram. Prenderam-nos ao jugo, como se faziam ao vivo, aos animais que tanto estimavam. O fim da história não sei, mas não me admira que todos os envolvidos fossem degredados para África.


António Sá Gué

P.S.: Boas férias

4 comentários:

Anónimo disse...

É bom que estes quadros fiquem registados, para que continuem a passar de geração em geração!

Abraço,
Isabel

Anónimo disse...

Trata-se, de facto, de uma história célebre. Uma vez, há cerca de 20 anos, andava eu e outro colega em lides etnográficas lá para as terras de Vimioso e Miranda, e, na aldeia de Caçarelhos, quando dissemos a uns velhotes que éramos de Moncorvo, diz um deles, depois de cogitar um bocado: "Isso é ao pé daquela terra onde puseram os guardas a lavrar, não é?" - bem, o nome da terra não a sabiam, mas sabiam do episódio... a cerca de 100 km de distância! De onde se conclui que o assunto chegou longe, a mais de 5 léguas ao redor...
Não sei se alguns foram deportados para Àfrica, mas que parece que houve quem emigrasse mais depressa para o Brasil, por causa disso, depois de passarem uns tempos escondidos nos buracos das ladeiras do Douro.
Acho que na História da GNR de Moncorvo, desde que cá foi instalada em 1913 (se não estou em erro), há 3 episódios notáveis: um foi esse, ocorrido talvez nos inícios dos anos 30; o outro foi nos anos 60, com a captura do grupo da LUAR liderado por Palma Inácio (embora com ajuda da GNR de concelhos vizinhos), e, finalmente, no início de 2010, a captura de 2 etarras fugidos de Espanha... - obviamente que o primeiro não deve constar dos anais daquela corporação, ehehe
n.

Paulo disse...

Nem imaginam a felicidade que me deu ler este registo feito pelo amigo e camarada Sá Gué. Espevitou-me memória e transportou-me a tempos idos onde os serões em casa da minha avó eram passados a ouvir as memórias de quem já tinha passado muito. Nas férias, o rumar à aldeia para passar uns dias era sempre desejado e os serões à volta do borralho eram a cereja no topo do bolo. Mesmo no verão a lareira era acesa para "fazer a comida em potes de ferro" e até no verão, devido às alturas daquelas serras da Lousa o calorzinho das brasas era benvindo em algumas noites. Lembro-me perfeitamente do relato do episódio dos guardas a lavrar, e permitam-me que acrescente mais uns pormenores ao maravilhoso relato do Sá Gué: Quando a guarda chegou à taberna, já os poucos homens lá presentes estavam a par dos desmandos dos homens da lei e aproveitando a distração destes que aplacavam o pó das gargantas com um(s) copo(s) de vinho, roubaram-lhes as armas, colocando-os assim numa situação de submissão. Com o juntar do povo ( há quem diga que os sinos tocaram a rebate) a vontade de humilhar os poderosos foi grande e talvez ajudados pelo grau alcoolico do vinho da Lousa aproveitaram o jugo que estava na rua em frente à porta da taberna - possivelmente pertencente a um vizinho e toca a por a guarda a lavrar, puxando a charrua tal qual umas bestas e apelidando-os de tal. Mas, quando o avançar das horas obrigou à recolha, ninguém quis devolver as armas aos homens da "lei e da grei" que voltaram desarmados pela fragada abaixo até ao quartel de Moncorvo. Naquela altura, possivelmente, se retornassem com as armas a vergonha seria pequena e restringida ao conhecimento dos Louseiros, mas roubar o armamento à Guarda era um crime muito grave, pelo que o Comandante accionou todos os meios e pediu reforços para cercar a aldeia dos insurrectos, servindo assim de amplificador da epopeia. No dia seguinte a Lousa já se encontrava rodeada pela guarda, donde ninguém saía nem entrava sem o crivo das forças do estado. No entanto, nessa noite, já os culpados, os cumplices, e mais alguns suspeitos tinham descido "as voltas" até à barca de Freixo-Numão e com ajuda das familias rumaram de comboio ao Porto ou Lisboa para apanharem o vapor rumo ao novo mundo. E de lá, alguns só retornaram passados 30 anos, e outros nem isso. Consta que as armas nunca apareceram e o caso foi abafado, conforme foi possivel, mas não impediu que o relato fosse propalado e entrasse para a história como o feito de dos homens de-trás-das-fragas rijos como elas.
Abraço Sá gué.

Júlia Ribeiro disse...

Olá, Sá Gué

Após mais de mês e meio de ausência, chego e deparo com este Quadro, magníficamente descrito.
Sim, a história é conhecida e era bem saboreada pelos que a contavam e pelos que a ouviam. Escutei-a várias vezes, entrecortada de boas gargalhadas, aos velhos da Corredoura. Hoje, vinda da sua pena, teve um sabor mais requintado.

Abraço
Júlia