O tamanho do mundo
- Deixa-me ver o mundo – pediu a Antoninha.
Ajudaram-na a erguer-se, ampararam-na e levaram-na até ao seu canto predilecto. De lá avistava o seu mundo, o sítio onde nasceu e viveu. De lá do alto avistava-se tudo, tudo mesmo. Eram imensas as aldeias que ganhavam vida à noite, especialmente quando as luzes se acendiam. Sabia nomeá-las a todas. Até Vila Flor se via, se se subisse ao altinho do zimbro.
Os montes foram a sua casa, conhecia-os em detalhe. Sabia perfeitamente qual a giesta que abrigava da vista e dos ventos a lorga do coelho, sabia onde as perdizes faziam os ninhos, onde a lebre se levantava dos pés. Deu nomes às fragas, quase sempre diminutivos, aos altos, aos baixos, às quebradas... aos caminhos então nem se fala. Calcorreou-os a todos, tropeçou em todas as pedras, molhou os pés em todas as poças.
Nunca foi além de Mogadouro, que os “gorazes” não eram de perder. À vila ia aos 23, à feira. A Freixo, foi uma vez para ver os pára-quedistas. Nunca passou a fronteira, Espanha era distante, longas horas de caminho. França, nem se fala, por lá perdeu um filho, e por lá deixou um pouco do seu coração.
Este sempre foi o seu mundo, um mundo delimitado pela quarta linha de montes, mas era imenso, muito maior que o mar, que tanto gostava de ter visto. Nele cabiam sonhos, emoções, alegrias e tristezas. Nele cabia toda a sua vida.
E ficou, ali, abstraída, olhar parado, sabe-se lá que ventos se levantavam do fundo das suas memórias, sabe-se lá que tempestades se encapelavam no seu mundo.
Morreu no dia seguinte.
ANTÓNIO SÁ GUÉ
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4 comentários:
Viva António,
excelente regresso! já estávamos com saudades.
Como saudades nos deixam todas as tias Antoninhas destes nossos povos...
abraço,
N.
Um curto texto, mas do tamanho do mundo.
Sá-Gué, é sempre um prazer lê-lo.
João Costa
Texto que diz bem o que somos. Acho até, que só um transmontano/a o pode entender na sua essência.
Conheci muitas "Antoninhas" para quem bastava olhar do cimo de uma fraga e sentiam-se donas do universo.
Que saudades que tenho desses tempos.
A.Lopes
O texto do Sá Gué é magnifico ! Não sei quantas vezes já disse o quanto gosto da sua escrita.
Tive como mãe uma Antoninha, cuja vida foi de luta, mas com o coração do tamanho do mundo!
Obrigada, Amigo.
Júlia
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