terça-feira, 17 de agosto de 2010

Quadros da transmontaneidade (17)

O tamanho do mundo

- Deixa-me ver o mundo – pediu a Antoninha.
Ajudaram-na a erguer-se, ampararam-na e levaram-na até ao seu canto predilecto. De lá avistava o seu mundo, o sítio onde nasceu e viveu. De lá do alto avistava-se tudo, tudo mesmo. Eram imensas as aldeias que ganhavam vida à noite, especialmente quando as luzes se acendiam. Sabia nomeá-las a todas. Até Vila Flor se via, se se subisse ao altinho do zimbro.
Os montes foram a sua casa, conhecia-os em detalhe. Sabia perfeitamente qual a giesta que abrigava da vista e dos ventos a lorga do coelho, sabia onde as perdizes faziam os ninhos, onde a lebre se levantava dos pés. Deu nomes às fragas, quase sempre diminutivos, aos altos, aos baixos, às quebradas... aos caminhos então nem se fala. Calcorreou-os a todos, tropeçou em todas as pedras, molhou os pés em todas as poças.
Nunca foi além de Mogadouro, que os “gorazes” não eram de perder. À vila ia aos 23, à feira. A Freixo, foi uma vez para ver os pára-quedistas. Nunca passou a fronteira, Espanha era distante, longas horas de caminho. França, nem se fala, por lá perdeu um filho, e por lá deixou um pouco do seu coração.
Este sempre foi o seu mundo, um mundo delimitado pela quarta linha de montes, mas era imenso, muito maior que o mar, que tanto gostava de ter visto. Nele cabiam sonhos, emoções, alegrias e tristezas. Nele cabia toda a sua vida.
E ficou, ali, abstraída, olhar parado, sabe-se lá que ventos se levantavam do fundo das suas memórias, sabe-se lá que tempestades se encapelavam no seu mundo.
Morreu no dia seguinte.

ANTÓNIO SÁ GUÉ

4 comentários:

Anónimo disse...

Viva António,
excelente regresso! já estávamos com saudades.
Como saudades nos deixam todas as tias Antoninhas destes nossos povos...
abraço,
N.

vasdoal disse...

Um curto texto, mas do tamanho do mundo.
Sá-Gué, é sempre um prazer lê-lo.

João Costa

Anónimo disse...

Texto que diz bem o que somos. Acho até, que só um transmontano/a o pode entender na sua essência.
Conheci muitas "Antoninhas" para quem bastava olhar do cimo de uma fraga e sentiam-se donas do universo.
Que saudades que tenho desses tempos.
A.Lopes

Júlia Ribeiro disse...

O texto do Sá Gué é magnifico ! Não sei quantas vezes já disse o quanto gosto da sua escrita.
Tive como mãe uma Antoninha, cuja vida foi de luta, mas com o coração do tamanho do mundo!

Obrigada, Amigo.

Júlia