sábado, 29 de janeiro de 2011
Quadros da transmontaneidade (32)
Para quem não conhecer o verdadeiro espírito da matança há-de crer que depois do cerimonial de morte, sempre muito masculino, tudo terminou. Depois da morte consumada do bicho, depois de o sacrifício ter sido aceite pelos penates, é tempo de cada um recolher a casa, voltar à rotina religiosa do ano, voltar-se para a venerável Tellus, esperar pelo abrolhar, rezar pela sua floração, agradecer-lhe as colheitas, mesmo que não tenham sido abundantes. Mas, não! Este é apenas o princípio do fim, o princípio da festa que há-de terminar lá pela tarde dentro.
- Já não mexe – disse o Ti Madanelo, ao mesmo tempo que lhe assentava uma palmada no lombo, apanhando todos de surpresa. – Este é bem melhor que o do ano passado – como que a gabar-lhe o tamanho dos presuntos.
- O do ano passado já não lhe tenho o paladar – respondia-lhe o Ti Chico, para quem o último era sempre o melhor.
Agora, que a agonia do animal terminou, a descontracção parece ter regressado. As larachas sucediam-se, voltaram as conversas que se têm entre homens, voltaram os dichotes sobre a pujança do animal que, no seu estertor de morte, ainda foi capaz de espinotear e “dar nas partes masculinas” ao ti Zé Maria.
Arrumado que foi o banco, ao qual regressaria mais tarde para ser devidamente raspado e aberto, o animal descia agora aos toros de amendoeira, paralelamente colocados, em jeito de pira, onde havia de ser devidamente chamuscado: purificado pelo fogo. Será? Haverá, nesse gesto, também algo de mais transcendente?
As cerdas crepitavam, o calor emanado pelos fachoqueiros de palha obrigava o grupo a raspar a pele do animal com sachos e calagouças, sempre à distância, sempre a verbalizar umas carvalhadas com alguma mofa que pousou no pescoço, ou a unha que não cedia e que, nem mesmo as mãos calejadas do Ti Chico suportavam tamanho calor.
António Sá Gué
(Continua…)
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
Paisagens de inverno, por terras de Moncorvo
Estalactites e estalagmites de gelo, sobre um bloco de rocha granítica, entre as Quintas da Estrada e Macieirinha (E.N. 220, para Freixo de Espada à Cinta) - dia 27.01.2011
domingo, 23 de janeiro de 2011
Quadro da Emigração – Reencontros!
Esta fotografia foi tirada por Gérald Bloncourt, em 1966, e correu o mundo português. Bloncourt foi um dos fotógrafos mais famosos a retratar e acompanhar os primeiros portugueses em França durante os difíceis anos da emigração clandestina. A fotografia encontra-se, pela primeira vez e a cores, no seu blogue (http://bloncourt.over-blog.net), donde se pode aceder a uma galeria de imagens extremamente representativas deste período.
Estas são as palavras plenas de emoção que Bloncourt expõe, de peito aberto, no seu blogue, quando reencontrou a menina que fotografara há 45 anos:
"Reencontrei a menina do bairro de lata de St-Denis.
Ela tem 52 anos. É casada e tem três filhos. Ela é professora.
Ela chama-se Maria da Conceição.
Ela vive em Portugal.
Fotografei-a em 1966 no bairro de lata português de St-Denis.
É uma imensa alegria para mim e sinto-me muito emocionado.
O que poderemos fazer para assinalar este reencontro e festejar este acontecimento?
Espero que partilhem comigo esta grande emoção que me sufoca."
Nota: Esta é uma das fotografias que constará do meu próximo livro acerca da emigração. O reencontro do fotógrafo e da menina já se deu após o momento em que Bloncourt me tinha cedido a fotografia para o livro.
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
Quadros da transmontaneidade (31)
- Ó carvalho no carvalho… deita-lhe as mãos às unhas, aperta com força, finca os cotovelos na barriga e puxa… carvalho – increpava o Ti Madanelo, pelo claro, quando viu o Ti Biqueirão, atrapalhado, à procura de encontrar a pata que lhe tinha escorregado da mão e já estava a ficar convencido de que não eram capaz de o pôr em cima do banco.
Mas, depois de muita força e sabedoria, as oito arrobas de chicha, bem medidas, lá acabaram por ser arrastadas, erguidas e deitadas sobre o banco pela bravura do grupo que, agora, se debatia, napoleónicamente em linha, encostados ao longo do lombo para mais fácil se protegerem do espernear feroz e constante do animal. E entre maldizeres e gargalhadas o Joaquim Cortador, sempre à cabeça do animal, atava-o fatalmente ao banco. Deu-lhe 5 voltas bem puxadas e com a corda sobrante fez uma laçada sobre a mesma. O focinho do bicho avermelhou-se, os olhos raiaram-se-lhe de sangue, os grunhidos eram agora de sufoco. Metia dó. O holocausto estava prestes a ser consumado. Por respeito os homens calaram-se. O Ti Joaquim apontou a faca, apalpou o osso com a mão canhota e espetou na direcção do coração. Ainda não tinha golfado o primeiro jorro e já a Tia Rabiça vinha com o alguidar na mão, a mexer o vinagre e sal, mistura que minutos antes tinha preparado e havia de evitar que o sangue se tomasse. Uma voz manda afastar o raparigo que furava entre homens e que, talvez, por reminiscências ancestrais de caçador, tudo queria ver. Os grunhidos foram diminuindo à medida que jorro de sangue fumegante, dirigido pela inclinação ligeira que o matador dava à faca, caía no alguidar de barro que e a mão ensanguentada e corajosa não parava de mexer.
António Sá Gué
(Continua...)
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
Festa de S. Sebastião
Hoje é dia do Mártir S. Sebastião. Na freguesia da Cardanha, a festa realiza-se no próprio dia. Já na Adeganha e em Torre de Moncorvo (na Corredoura), a festa tem lugar no próximo fim-de-semana.
O culto de S. Sebastião em Torre de Moncorvo deve remontar ao século XVII, período que datará a capela existente no Largo da Corredoura, património da Junta de Freguesia. É costume neste dia efectuar-se na parte da tarde, a arrematação de vários produtos da região, em louvor do Santo.
Participe!
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
A EXTINTA CULTURA DO SUMAGRE EM TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO IV
5.1 – Atafonas existentes e sua preservação
Atafonas são os moinhos onde se processava a redução da folhagem do sumagre a pó, para posterior comercialização. Sabemos de algumas poucas atafonas que, embora em semi-ruína, ainda existem na nossa região transmontano-duriense, uma em Avarenta, no concelho de Valpaços, outra em Vale de Figueira, no concelho de S. João da Pesqueira - esta muito curiosa por ter a base em xisto - e ainda uma terceira em Muxagata, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, que é a que está melhor conservada,apesar de instalada num casinhoto de xisto transformado em loja de gado onde cosbitam dois cães,uma mula e meia dúzia de pombas...Há registos da existência nos anos vinte do século passado de cinco atafonas ainda a funcionar no concelho de Foz-Coa, uma na freguesia de Mós e de quatro na própria vila. A referida freguesia de Mós era, à semelhança de Avarenta, de Tinalhas e de outras terras do nosso país, conhecida como terra de sumagreiros e uma crónica do século XVIII de um fidalgo desta terra D. Joaquim de Azevedo a descreve como tal: «…Mós fica em um estreito valle por onde corre um pequeno ribeiro que vem de S. Marcos e junta com outro dito Escorna Bois entre montes cheios de amendoeiras e sumagres, com boas hortas, muitas cebolas e algum pão…». Mas era nos taludes soalheiros, de solos pedregosos e pouco férteis para outras culturas, que o sumagre se instalava, como vem registado noutra excelente monografia, esta sobre os sumagreiros de Avarenta no concelho de Valpaços, da autoria do Dr. Adérito Medeiros Freitas: «…Além dos sumagres espontâneos que abundam no monte baldio e nas ladeiras incultas, por entre o fragoedo, havia muitos sumagres plantados por estaca, nas ladeiras mais pobres de húmus…». Nesta aldeia de Avarenta a atafona está devidamente referenciada por este autor e o município de Valpaços está atento a este raro património, mas é possível que outras existam na região transmontano-duriense, deixando aos leitores esse desafio. Estas atafonas podem confundir-se com os antigos lagares de azeite, dada a semelhança da mó de granito – geralmente apenas uma – e com um eixo central que é um tronco de madeira que permitia rodá-la sobre um pio geralmente também em granito - em Vale de Figueira este pio foi feito com lajes de xisto - sendo essa grande roda puxada a força de animal, muar ou bovino. As folhagens do sumagre eram previamente secas ao sol e depois batidas com uns manguais para ficarem em pequenos pedaços que posteriormente eram moídos nas referidas atafonas, ficando reduzido a um pó que era ensacado e encaminhado para o comércio.
Atafona de Muxagata - V.N. Foz Côa.
Atafona de Vale de Figueira - S. João da Pesqueira.
Curiosamente – e como grande exemplo para nós transmontanos e durienses – é na Beira Interior, numa povoação de forte tradição sumagreira denominada Tinalhas, no concelho de Castelo Branco, que se organizou no ano 2000 uma agremiação cultural ligada ao seu passado sumagreiro: « SUMAGRE - Associação de Dinamização e Salvaguarda Patrimonial ».
5.3 - Publicações
Em Trás-os-Montes a única referência que conheço é o título do Boletim da Junta de Freguesia de Argoselo, no concelho de Vimioso que tem como título « Sumagre », o que dá ideia da consciência que os habitantes de Argoselo têm do seu forte passado peliqueiro e sumagreiro.
Nota: Deixo o meu agradecimento ao Sr. Dr. Adérito Freitas pela cedência de uma foto e um desenho. Bem haja.
Bibliografia
Adérito Medeiros Freitas – 2006 – « Os sumagreiros de Avarenta – cultura,colheita, transformação e exportação do sumagre » - Edição da Câmara Municipal de Valpaços.
Artur Carrilho – 1940 – « Ainda o sumagre » - artigo na revista « Gazeta das Aldeias »
Francisco Ribeiro da Silva – 2001 – « Porto e Ribadouro no século XVII – a complementaridade imposta pela natureza » - artigo na « Revista da Faculdade de Letras »
JOSÉ ALVES RIBEIRO
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
A EXTINTA CULTURA DO SUMAGRE EM TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO III
Foi na transição do século XVII para o XVIII que a produção e comércio do sumagre atingiram o auge na região de Riba-Douro. Com o desenvolvimento da viticultura, sobretudo a partir da demarcação pombalina, este cultivo fora progressivamente substituído pela vinha, entrando em declínio, declínio esse apenas interrompido nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX, devido à grande crise provocada pela filoxera, em que o sumagre, juntamente com o cânhamo e o tabaco foram as culturas alternativas à vinha.
Mas nos meados e finais do século XVII o valor do sumagre transaccionado no mercado portuense para uso interno e exportação chegava a suplantar - o que é surpreendente - o próprio valor do comércio do vinho!
Mas já anteriormente, no século XVI há registos relativos ao comércio desta matéria prima, como um testemunho do cronista Rui Fernandes, datado de 1531 numa sua crónica muito curiosa intitulada « Descripção da Roda de Lamego duas Légoas» onde relata: «…neste circhoito das sobreditas légoas 15.000 arrobas de çumagre que carregavam pera lixboa e ao algarve e às ilhas e pera todo entre douro e minho e tralos montes e pera a beira…»Em registos do século seguinte, iremos confirmar a grande expressão da produção e comércio deste produto com a transcrição de um excerto de um excelente artigo do Professor Francisco Ribeiro da Silva da Faculdade de Letras da Universidade do Porto intitulado « Porto e Ribadouro no século XVII – a complementaridade imposta pela natureza »: «…os produtos comercializados oriundos de Riba-Douro eram naturalmente o vinho, de que numa acta da Câmara do Porto de Agosto de 1647 é registada a entrada de cerca de 20.000 pipas por ano de vinho de Lamego, o azeite, os citrinos e o sumagre...numa complementaridade em que o Porto, por terra ou por via fluvial, abastecia a região de Ribadouro de géneros básicos como o pão, o açúcar, o peixe seco, o sal, o vasilhame para o vinho, panos e instrumentos diversos…» Nesse artigo é–nos indicado que as primeiras notícias da exportação de sumagre datam de 1584 para Bristol pelos mercadores António Reimão e Anrique Soli, 200 e 210 arrobas respectivamente, sendo a arroba neste caso correspondente a vinte quilos. A exportação em sacos de pó de sumagre para apoio à indústria de curtumes do norte europeu - grande produtor de couros mas sem clima para esta planta mediterrânea – foi aumentando sempre ao logo dos séculos XVI e XVII e fora tal que nos finais do século XVI os sapateiros do Porto queixaram-se da falta e da carestia do sumagre para a curtimenta dos seus couros a tal ponto que foi editada uma regulamentação camarária que obrigava a que pelo menos metade do sumagre chegado ao Porto tivesse de ser comercializado no mercado interno e não pudesse ser exportado, o que obrigava também ao preço mínimo de 160 réis a arroba. Há registos de 1627 que nos informam de um movimento comercial anual de 20.000 sacos de cerca de 2 arrobas cada, ou seja, cerca de 40.000 arrobas e em 1667 esse valor ultrapassava as 54.000 arrobas, tendo Lisboa como destino cerca de 21.000 e o restante a exportação para a Alemanha, Inglaterra, França e Holanda. Como já foi referido, a seguir a este auge começa algum declínio desta cultura com a expansão do sector vitivinícola, sendo o registo do comércio de sumagre em 1786 de apenas 30.000 arrobas. Não obtive dados da época da filoxera em que ainda houve algum ressurgimento do sumagre, mas sabe-se que a partir dos anos vinte do século passado o declínio foi sendo gradual e o último registo que possuo é de um artigo do Eng. Agrónomo Artur Carrilho, publicado na «Gazeta das Aldeias » em Janeiro de 1940, em que refere que o sumagre do concelho de Foz-Côa passa por ser dos melhores do mercado pela riqueza em tanino e pelo cuidado na apresentação, refere ainda que no concelho de S. João da Pesqueira, em Vilarouco e Valongo dos Azeites, se costuma misturar a flor à folhagem na sua preparação o que faz baixar a sua qualidade. Também no referido artigo faz referência ao aumento do preço devido à guerra, para um escudo e escudo e meio quilo do sumagre do Douro. Deve ter sido nestas décadas de quarenta e cinquenta que se cultivaram os últimos sumagres na nossa região, pois actualmente o sumagre é apenas mais um dos muitos arbustos que enfeitam a paisagem, enriquecendo a deslumbrante paleta de cores no douro outonal, mas também menos bem-vinda em situações de planta invasora, porém como cultivo é apenas uma memória do passado, e as atafonas que se mantêm estão também elas próprias votadas ao esquecimento e em vias de total ruína. Como memória que é, e dada a importância que já tivera, é de justiça que algo se faça para que essa mesma memória seja preservada, talvez através do recentemente criado Museu do Douro, sendo naturalmente nesse sentido que este nosso artigo está a ser elaborado.
Representação gráfica de uma atafona.
José Alves Ribeiro
(continua)
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
A EXTINTA CULTURA DO SUMAGRE EM TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO II
3.1 – Os sumagres na indústria dos curtumes
Já foram sendo indicadas algumas das potencialidades desta espécie e das espécies afins, mas iremos centralizar a matéria deste artigo na sua utilidade maior que é a sua utilização como fonte de tanino para a indústria de curtumes, embora tivesse caído em desuso a partir do início do século XX pela obtenção de outras fontes de taninos naturais em condições mais económicas, como cascas de quercíneas e o desenvolvimento pela indústria química dos taninos sintéticos, sendo o tanino fundamental na preparação de peles e couros, extraindo–lhes gorduras e conferindo-lhes certas propriedades de textura, matiz e durabilidade. Há que relembrar aqui a grande ligação da comunidade de origem judaica trasmontana, quer ao comércio de couros e peles – ainda actualmente são referenciados os peliqueiros de Carção e Argoselo no concelho de Vimioso, por exemplo – quer à correlacionada indústria de curtumes. Há que referir que o uso do sumagre nos curtumes passava por uma prévia preparação da matéria prima, sendo necessária a sua secagem e redução a pó em moinhos próprios, semelhantes aos do azeite, denominados atafonas. Era esse pó, muito rico em tanino, que se usava na indústria. De facto os sumagres são arbustos que apresentam em média uma proporção de 20 a30 % de tanino na sua constituição, embora variando com as espécies e com as variedades. As referidas variedades do Rhus coriaria, que é o melhor e mais usado, variedades essas já referidas com as designações de «macho» e «fêmea», apresentam teores de tanino diferentes, mais elevado na variedade macho – 25 a 30% - e menor na fêmea - 22 a 25 %.
Pormenor do sumagre, tendo como fundo Torre de Moncorvo. ( foto: João Costa- 2005)
3.2 – Outras utilizações dos sumagres
Para além do uso na curtimenta de couros e peles, também já se indicou o uso de algumas espécies como tintureiras na indústria têxtil, havendo ainda outras utilizações a assinalar e algumas são muito antigas, embora ainda em uso no nosso tempo, como é a sua utilização como condimento. Já no tempo do Império Romano se usavam na culinária pastas de sumagre, extraídas dos frutos, de sabor um pouco amargo, semelhante ao do limão, e esse uso como condimento ainda se verifica nalguns países do Médio Oriente, assim como se inclui como um dos ingredientes na preparação do denominado «zahtar», condimento salgado muito apreciado no mundo árabe, à base de sumagre, gergelim e tomilho. Também não se pode deixar de indicar o uso de certas espécies de sumagres como plantas medicinais, havendo alguns de cujas folhas e talos se preparam pastas utilizáveis na cura de eczemas e outros problemas de pele, sempre e só de uso externo, e só de certas espécies pois neste género existem espécies tóxicas e até venenosas, sendo uma das mais tóxicas o Rhus toxicodendron L.,como o próprio nome científico indica.
José Alves Ribeiro
(continua)
domingo, 16 de janeiro de 2011
Quadros da transmontaneidade (30)
O dia acordou frio, como era preciso, para curar bem a carniça. O Joaquim Cortador, homem habituado a estas andarilhanças, afiava a faca junta à pia das pitas onde, de quando em vez, a lavava e lhe tirava as partículas da pedra abrasiva. Depois, passava o fio entre o indicador e o polegar, lentamente, como se estivesse à procura de alguma falha e, de seguida, experimentava-o na unha do polegar esquerdo. Como matador afamado que era não queria falhar. Não queria passar nenhuma vergonha, tinha que lhe acertar à primeira. Não queria que durante a chamusca, mal o bicho sentisse a quentura da palha a arder, e ainda com algum sangue quente nas veias se levantasse e desatasse a correr rua fora, como se contava em todas as matanças.
O Chico, de regador na mão, lavava o banco que durante todo o ano esteve acantoado, sem serventia, acantoado no palheiro. O Manel da Lage, já lá vinha com a samarra pelos ombros. A lareira já crepitava, rodeada de tisnadas panelas de ferro que haviam de derreter os rijões.
- Atão vamos lá! – instigou o Chico quando achou que a equipa estava pronta.
Fez um sinal afirmativo com a cabeça, agarrou a corda já com o nó corrediço preparado e dirigiu-se para o cortelho. Entrou. O grupo ficou à entrada a dar palpites, a estimar o peso, a estudar-lhe as manhas. O reco deu duas roncadelas e refugiou-se no canto mal o viu aproximar-se. Com o laço ao dependuro na mão direita e na tentativa de o acalmar foi proferindo sons mansos e brandos, leves palmadas no lombo, como se o quisesse enganar, esperançado que ele desejasse suicidar-se e abocanhasse o isco que, com todo o jeito, lhe colocava à frente dos olhos, no fundo, como se ele não percebesse o destino trágico que o aguardava. Nada! Foram várias as tentativas para lhe meter o laço na boca mas só pela força o conseguiram. Só depois de várias voltas ao cortelho, depois de vários arranques capazes de assustar os seus parentes javalis a operação foi consumada. Agora, já nada o salvaria do trágico destino. Já de nada lhe valiam os grunhidos estridentes que se faziam ouvir nas redondezas, já de nada lhe valiam os safanões caprinos que na tentativa de se soltar da corda esticada, e bem presa ao queixal, o encaminhava em direcção ao banco.
António Sá Gué
(Continua…)
A EXTINTA CULTURA DO SUMAGRE EM TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO
O nosso agradecimento.
A EXTINTA CULTURA DO SUMAGRE EM TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO
José Alves Ribeiro, Eng. Agrónomo, Professor Emérito da UTAD
1 – Caracterização botânica e fitogeográfica do sumagre – Rhus coriaria L.
O sumagre, de nome científico Rhus coriaria L., é um arbusto da família das Anacardiáceas, família botânica de plantas ricas em resinas e taninos, onde também estão inseridas espécies como o cajú, a manga, o pistacho, a aroeira e a cornalheira, sendo estas três últimas espécies arbustivas do género Pistacia, sendo a cornalheira - Pistacia terebinthus L. - também frequente nas matas e mortórios da vegetação mediterrânea duriense. O sumagre tem a sua inserção fitogeográfica na grande região mediterrânea, mais precisamente na sua sub-região mais oriental, tendo-se expandido a sua cultura para toda a mediterraneidade. Os romanos o utilizavam como condimento, sendo também muito antiga a sua utilização na preparação das peles e couros ou seja no artesanato e na indústria dos curtumes, utilização essa que entrou em declínio a partir do início do século XX, com o desenvolvimento de outras fontes de obtenção do tanino para a referida indústria.
É um arbusto de médio a grande porte, mesmo arborescente, de marcadas preferências por locais quentes e soalheiros, nas áreas de feição mediterrânea do nosso país, na Terra Quente e vale do Douro em Trás-os-Montes e Alto Douro, na Beira Interior, no Alentejo, no Algarve e nas Ilhas da Madeira e dos Açores onde também fora cultivado. Instala-se especialmente nos taludes e nas bordaduras de matos, de caminhos ou de campos de outras culturas, locais para onde a espécie se tem disseminado ao longo das últimas décadas, desde o abandono da cultura, tornando-se um arbusto naturalizado na paisagem vegetal e em certos locais tornando-se mesmo um arbusto potencialmente invasor de vinhas e pomares. Para uma breve descrição botânica podemos caracterizá-lo como um arbusto de folhagem caduca, ramoso, de rebentos e pecíolos vilosos, ou seja de muita pilosidade, de folhas compostas, imparifolioladas, de três a sete folíolos de forma ovado-lanceolada, de recorte crenado-serrado; flores pequenas, dispostas em panículas, de inserção terminal ou lateral nos ramos, sépalas esverdeadas e pétalas brancas, glabrescentes na página inferior e pubescentes a vilosas na página inferior; frutos em cachos tirsóides, sendo cada fruto uma pequena drupa, ou seja um fruto semi-carnudo de caroço, drupas essas densamente vilosas e de cor castanha purpurescente. Existem duas variedades desta espécie, denominadas «macho» e «fêmea», sendo a primeira variedade de maior porte e de folhas também maiores e lisas na página superior e de pecíolo alado na extremidade – ao contrário da variedade «fêmea» em que as folhas apresentam as duas páginas penugentas e de pecíolo não alado nos entrenós superiores.
Sumagre num talude, junto ao rio Douro, na Ferradosa (2008).
2 - Outras espécies do mesmo género Rhus
Uma outra espécie também mediterrânea embora com maior difusão pela Europa sub-mediterrânea da zona balcânica e húngara e ainda da Ásia temperada, é o denominado sumagre tintureiro, Rhus cotinus Scop., é usado como planta ornamental pelos seus longos cachos florais esverdeados, e também usado como tintureiro pela casca das raízes e rebentos juvenis, dando côr amarelo-alaranjada aos tecidos. Outra espécie próxima é o sumagre africano, Rhus pentaphyllum L., de cinco folíolos, originário da região magrebina no Norte de África, também utilizado nos curtumes. Quanto às espécies americanas temos de assinalar o sumagre branco ou sumagre da Colúmbia, Rhus glabra L., sem pilosidade, bastante taninoso mas também de boas qualidades como planta melífera, temos também o sumagre «corno-de veado» ou sumagre da Virgínia, Rhus typhina L.,o sumagre copal, Rhus copallina L., de que se extrai uma boa resina e ainda o sumagre do Arkansas, Rhus cotinoides Nut.,cuja casca e lenho dão matéria corante amarela. Há que referir que os sumagres americanos foram sempre menos usados para os curtumes do que os mediterrâneos por darem couros demasiado corados. Ainda há a considerar os sumagres asiáticos, sendo de assinalar as seguintes espécies: o sumagre semi-alado, Rhus semialata Murray, que produz galhas muito ricas em tanino, o sumagre de cera, Rhus succedanea L., ornamental pela folhagem avermelhada e produtor de uma cera que é extraída dos frutos, sendo também das drupas que se extrai a denominada laca-do-Japão, a partir de uma outra espécie asiática, Rhus vernicifera L., sendo o nome vernicifera muito apropriado pois com essa laca é preparado um excelente verniz.
(continua)
sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
General Tomé Pinto faz hoje anos!
Como ilustre conterrâneo, aqui ficam os nossos parabéns pelo seu aniversário, agradecendo a informação ao nosso colaborador e amigo Filipe Camelo, coordenador do Fórum de Maçores (e de outros fóruns de freguesias do nosso concelho), que nos enviou a foto e informação respectiva:
General Alípio Tomé Pinto
Nasceu em 14.1.1936, na aldeia de Maçores, concelho de Torre de Moncorvo. É licenciado em Ciências Militares e seguiu a carreira do Exército, na Arma de Infantaria. Teve um percurso brilhante, chegando ao posto de General, (em 5.5.1981) quando tinha apenas 45 anos de idade. Todos os seus actos em campanha foram reconhecidos como "heróicos de abnegação e de Valentia extraordinários", pelo que foi condecorado com a medalha de prata de Valor Militar com Palma e promovido, por distinção, ao posto de major. Cumpriu missões em Angola e na Guiné e comandou uma Brigada Portuguesa (durante 2 anos), intervindo em exercícios da NATO de que resultaram duas menções honrosas e as melhores ligações com o Exército Italiano e Reino Unido. Teve papel decisivo nos acontecimentos do 25 de Novembro de 1975, os quais levaram à consolidação da democracia em Portugal. Foi Chefe de Estado Maior da Região Militar de Lisboa, logo após esses acontecimentos, com o posto de Coronel. Em 28 de Agosto de 1982 é escolhido para Comandar a Guarda Nacional Republicana, até 4.1.1988. Foi assessor do General CEMGFA para os assuntos de pessoal e logística, desde Maio de 1981 a Agosto de 1982. Exerceu as funções de Quartel Mestre General no Exército a partir de 4 de Janeiro de 1988 e depois as de Vice-Chefe do Estado maior do exército de que pediu a exoneração em Março de 1991. Em Junho de 1991 foi nomeado, por escolha, para representante de Portugal na Comissão Conjunta para a Formação das Forças Armadas Angolanas nos termos do Acordo de Bicesse. Em 4.5.1993 foi colocado como Juiz Vogal no Supremo Tribunal Militar. Da sua folha de serviços constam: treze louvores ao nível de Ministro ou Oficial General, quinze condecorações nacionais, dez condecorações estrangeiras. Desde Janeiro de 1995 tem vindo a exercer funções de Curadoria ou Consultadoria nas Instituições ou Empresas de Direito Privado, fazendo parte em alguns órgãos sociais. O General Tomé Pinto é um dos mais prestigiados militares Portugueses da sua geração.
Fonte: http://www.bragancanet.pt/filustres/apinto.html
Fotografia do General Tomé Pinto neste post: retirado de artigo da LUSA em: http://cc3413.wordpress.com/2009/06/11/xvi-encontro-nacional-de-combatentes/
Ver também: http://macores.forumativo.com
Nota: Agradecemos a colaboração de Filipe Camelo, coordenador do Fórum de Maçores.
segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
Quadros da transmontaneidade (29)
"O raio do reco pressentiu que o seu dia tinha chegado”, pensava a Ti Maria Júlia depois de ter ido à cortelha vê-lo com vida pela última vez. Já tinha dito ao Chico, que não o queria ver morrer. “Até parecia tristonho”, condoía-se ela, “nem se aproximou da pia para abocanhar a vianda como fazia sempre mal pressentia a minha presença.”
Fechou o cortelho com a tranca e virou costas. Abanou a cabeça, como que a afastar aqueles pensamentos. Não ia chorar por ele, era o que faltava, que Deus criou os porcos para livrar os homes da fome, para mais nada. Eles não são como nós, embora às vezes não pareça. Aquela era a razão da sua existência, mas que lhe dava dó, dava, foi um ano inteiro a cevá-lo do bom e do melhor. E lembrava-se das muitas caldeiras de nabiças escaldadas, das muitas cargas de castanhas acarretadas, dos muitos quilos de farelo comprados, da muita folha de olmo ripada, e agora, de um momento para o outro…
António Sá Gué
(Continua...)
Felgar - mau tempo derrubou sobreiro centenário
O mau tempo que se fez sentir na noite de 7 para 8 de Janeiro do corrente ano, com chuva e fortes ventos, provocou a queda de um velho sobreiro existente no adro do santuário de N. Srª. do Amparo.
Em comunicado divulgado aos felgarenses, o presidente da Associação da Mordomia do Santuário de Nossa Senhora do Amparo, José A. Rachado, exprime a tristeza daquela associação, responsável pelo espaço, pela queda da árvore, anunciando uma reunião para a resolução do problema (remoção do sobreiro e o que recolocar no seu lugar).
Tempo Contado II - abertura
domingo, 9 de janeiro de 2011
"Tempo Contado" em livro
Título: Tempo Contado. Diário 1994-1995
Autor: J. Rentes de Carvalho
Editora: Quetzal
Ano desta edição: 2010
Nota: a edição holandesa (Tussenjaar), data de Maio de 1996.
Recebi-o como prenda de Natal e tem-me deliciado a sua leitura. Trata-se de um diário admirável, através do qual entramos no dia-a-dia, na intimidade dos pensamentos e reflexões do autor (até onde ele nos deixa), entre 15.05.1994 e 15.05.1995, um ano na vida de um escritor.
O leiv-motiv foi, segundo o mesmo, registar o seu percurso durante o ano em que se reformou, obrigando-se assim a disciplinar o acto de escrita, nesse limiar de uma nova fase da sua vida.
Que fazia eu nesse tempo? - é a pergunta que cada um fará, desde que fosse gente, nesse lapso de tempo que, para mim, foi ontem, apesar de terem transcorrido 16/17 anos... Cada qual fará uma leitura pessoal e íntima, correlativa aos passos da vivência do autor. No meu caso pessoal, o interesse redobra, na medida em que esses foram anos trágicos em que faleceu uma parte de mim. Por isso, nostalgicamente viajei até esse passado, pela mão de Rentes, num tempo em que não tinha ainda o previlégio de conhecer pessoalmente o nosso "homem das Holandas" (conquanto já dele tivesse recebido o efémero "Transmontansen Post"). Com ele deambulei pela geografia (que bem conheço) de muitos lugares mencionados, mesmo os que se subentendem, descontando obviamente as paragens mais cosmopolitas do seu percurso, já que nunca passei para o outro lado dos Pirinéus.
No que toca ao Local, aí revi algumas pessoas que conhecemos, algumas que já cá não estão, além de situações ocorridas e que já a poucos lembra: scripta manent. Por aí constatamos que Moncorvo é, para além dos Estevais, lugar de destaque nas deambulações portuguesas e trasmontanas do autor. A Moncorvo de Rentes é o lugar onde vem comprar o jornal, abastecer-se à mercearia, ao talho, à feira. Mas, sobretudo, é o lugar mais próximo onde vem respirar, ritual que mantém hoje em dia, quando cá se encontra, pois que hábitos são coisa que não se perde com duas cantigas.
Moncorvo representa, na obra (nesta e noutras, de que destaco Ernestina), de certo modo, a "civilização" no meio deste interior rural. É a Moncorvo que vem enviar os artigos que ia escrevendo para o director do jornal holandês, ainda por fax (passaram 16 anos!), já que os mails, ainda na sua fase pré-histórica, eram de difícil envio, com ligações a cair, para além de outros problemas informáticos que também aqui se resolviam, ou recorrendo ao funcionário bancário, ou ao professor da escola, o "expert" local nos mistérios dos computadores. Este baluarte de "civilização" já o encontramos em Ernestina, quando era a Moncorvo que se vinha ao médico (quando se estava nas últimas, como aconteceu ao avô do autor, mordido por bicho peçonhento e que faleceu a caminho), ou ao dentista (o famoso Sr. Barros-dentista), ou a tratar de outros assuntos importantes.
Não há dúvida que Moncorvo disfruta de um lugar especial no imaginário e na obra rentiana, o que nos deve encher de orgulho e gratidão pela internacionalização desta vila por parte de um Grande da Literatura portuguesa (e não só), que só agora, felizmente, começa a ser devidamente (re)conhecido.
E o melhor agradecimento e melhor homenagem que lhe podemos prestar é ler a sua Obra, a qual não se restringe apenas ao suporte de papel. Homem de espírito jovem e aberto às novas tecnologias, é obrigatória a visita ao blogue que mantém há vários anos, precisamente com o mesmo título do diário: "Tempo Contado", o livro por onde tudo começou: http://tempocontado.blogspot.com/
No mesmo blog, sobre este livro, ver: http://tempocontado.blogspot.com/2010/11/tempo-contado-19941995.html
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N.Campos
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
Ainda um poema natalício...
Então aqui vai:
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É Natal cai o Nevão
No seu quarto agasalhados
O padrinho e o João, dormem muito sossegados.
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O vento tanto ralha, tanto brama
Que o Padrinho apavorado
Acorda na sua cama...
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e diz logo ouvindo tal:
- Eu já sei o que isto é,
deve ser o Pai Natal
a descer pela chaminé..?!!!
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Com este Conto de Natal, da sabedoria da minha mãe que me presenteava todos os Natais, em tempos escassos dessa altura. (...)
Esperança Moreno
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
Quadros da transmontaneidade (28)
O forno comunitário
Hoje, voltei a recuar no tempo, entrei no forno da minha infância. Vi-me agarrado às saias da Tia Maria Júlia, rua acima, engaranhado pelo frio que se fazia sentir. Virou, e eu também, para a canelha da Carreira da Fonte e entrou no forno. Mal atravessei a soleira da porta, já gasta, e a porta de castanho se encerrou pela força de um adulto, a amenidade do local invade-me e uma lassidão percorre-me o corpo. Sento-me, ou melhor, deixo-me cair sobre o monte de feixes de giestas, e fico a observar as figuras que deambulam pelo espaço todas elas encanecidas pela farinha branca.
A Ti Carmilde, lá dentro, na única divisão existente, dobrada sobre a masseira, fingia as bolas e o pão que acabariam de levedar já na sua forma final. Gestos simples, mil vezes repetidos, dão-lhe uma eficácia assombrante. Cá fora, em frente à boca do forno, a Ti Pimenta acabava de varrer as últimas brasas e preparava-se para começar a enfornar. As rodas moles de massa, sempre amparadas por mãos calejadas, iam desaparecendo da masseira e, desembaraçadamente, sem perderem a forma, eram transferidas para a pá de cabo comprido. Ao sinal de benzedura que a Ti Albertina não deixava de bichanar, a pá desaparecia dos meus olhos, entrava na fornalha e, num gesto seco e repentino, eram largadas nas aquecidas cápias graníticas.
Já a ar frio da tarde de inverneira entrava pela frincha da porta de saída quando a tampa do forno se fechou.
António Sá Gué
Foto: João Vieira Pinto