terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Quadros da transmontaneidade (28)



O forno comunitário

Hoje, voltei a recuar no tempo, entrei no forno da minha infância. Vi-me agarrado às saias da Tia Maria Júlia, rua acima, engaranhado pelo frio que se fazia sentir. Virou, e eu também, para a canelha da Carreira da Fonte e entrou no forno. Mal atravessei a soleira da porta, já gasta, e a porta de castanho se encerrou pela força de um adulto, a amenidade do local invade-me e uma lassidão percorre-me o corpo. Sento-me, ou melhor, deixo-me cair sobre o monte de feixes de giestas, e fico a observar as figuras que deambulam pelo espaço todas elas encanecidas pela farinha branca.
A Ti Carmilde, lá dentro, na única divisão existente, dobrada sobre a masseira, fingia as bolas e o pão que acabariam de levedar já na sua forma final. Gestos simples, mil vezes repetidos, dão-lhe uma eficácia assombrante. Cá fora, em frente à boca do forno, a Ti Pimenta acabava de varrer as últimas brasas e preparava-se para começar a enfornar. As rodas moles de massa, sempre amparadas por mãos calejadas, iam desaparecendo da masseira e, desembaraçadamente, sem perderem a forma, eram transferidas para a pá de cabo comprido. Ao sinal de benzedura que a Ti Albertina não deixava de bichanar, a pá desaparecia dos meus olhos, entrava na fornalha e, num gesto seco e repentino, eram largadas nas aquecidas cápias graníticas.
Já a ar frio da tarde de inverneira entrava pela frincha da porta de saída quando a tampa do forno se fechou.

António Sá Gué

Foto: João Vieira Pinto

7 comentários:

Anónimo disse...

Estes magníficos "quadros", como lhes chama com alguma propriedade Sá Gué, já constituem um painel ao mesmo tempo grandioso e contido da alma mater transmontana. A sua aparente simplicidade de esboço, por vezes agreste, por vezes intimista, por vezes pungente, com um recorte que me lembra Torga na sua verdade telúrica, são já a meu ver um rosto indesmentível deste espaço. Tenho-os saboreado assim um pouco a espaços que o tempo me permite e confesso que neles me revejo sempre com emoção e comigo decerto muitos outros. Obrigado ao António Sá Gué !
Daniel

Anónimo disse...

Muito bonito este último "Quadro". Tem razão, Daniel!
É óptimo sentirmos que esta autenticidade ainda existe e que o Artista no-la traz pura.

Obrigada, António.
Isabel

Júlia Ribeiro disse...

Olá, Sá Gué:

A sua descrição é magnífica!

Se eu mudasse os nomes para Tia Maria Panda (a forneira) Tia Alexandrina, Tia Emília Mascarenhas, etc, o cenário era exactamente o mesmo no forno comunitário da Corredoura.
Obrigada por este momento de gratas recordações.


Olá, Daniel:

Seja bem aparecido. Eu sei que tem uma vida extremamente ocupada, por isso ainda é com maior prazer que todos saudamos a sua presença.
É que as suas palavras espelham bem a sua humanidade, a sua grandeza de alma e coração.

( Eu apareço menos do que gostaria, porque a saúde não está a ajudar ).


Para ambos, para o amigo Nelson e para todos os blogueiros um abraço muito grande.

Júlia

Anónimo disse...

Corroboro perfeitamente os comentários dos nossos amigos, sobre este magnífico "quadro", para mais bem ilustrado com uma bela foto fe forno carviçaleiro. E não fosse famoso, urbi et orbi, o pão de Carviçais. À Drª. Júlia ocorreu-lhe o forno da Corredoura - a mim lembrou-me o forno comunitário de Mazouco, a seguir ao largo da fonte do Chido, do lado direito. E os cheiros: da lenha, do pão quente (as fogaças, ou sêmeas) ainda a fumegar...
Hoje os velhos fornos acabaram...
tudo acaba... somos a última geração que ainda viu isto, nestas terras.
N.

João Costa disse...

Perante o saboroso texto de Sá Gué, não resisti a enviar-lhe a imagem de um forno situado no Peredo dos Castelhanos, e registado em 2005. Este forno, apesar de pertencer a um particular, servia a comunidade. Mas, segundo informação próxima,existe aí outro que, por vezes, ainda labora.

João Costa

Anónimo disse...

viva João, peço desculpa pois nem tinha reparado na autoria da foto. Pensei que era do SáGué e q o dito cujo forno era de Carviçais, onde os havia (e há) bem afamados. O da tua foto parece estar em ruínas, apesar da cinza ao lado. A foto é recente? Seria comunitário ou particular? Era uma boa ideia recuperá-lo.
abraço,
N.

António Sá Gué disse...

A culpa foi minha. Eu inicialmente esqueci-me de colocar os créditos de quem tirou a foto e só depois de ver o cometário do Nelson é que me apercebi da falha.

Abraço.