segunda-feira, 6 de junho de 2011

Quadros da transmontaneidade (47)

Já o Sol se abeirava dos telhados dos palheiros que circundavam a fraga da Lage quando o ti Adelino e companhia pousaram os malhos. Àquela hora da tarde, por Deus crer, e de certeza condoído pelo esforço dos Homens ao longo da torreira estival, mandava sempre uma brisa que lhe secava a camisa do corpo e os ajudava na limpeza da pirâmide de grão e moinha que, ao longo do dia, se foi erguendo, lentamente, eirado após eirado.
E depois de breves experiências, depois de atirar aleatoriamente pequenas pazadas de grão para avaliar a direcção do vento, era um ver se te avias para aproveitar aquela bênção divina. As pás de madeira erguiam-se aos céus e, com gestos simples e eficazes, a pirâmide mudava de sítio. As mulheres imbuídas desse espírito, o espírito de ligação com a natureza, não esperavam pelo cansaço masculino. Ajustavam o lenço negro, apertavam a blusa e, à medida que vassouravam ao delével as espigas mais pesadas que o vento não levava, ofereciam o corpo, sim!, ofereciam o corpo, à contínua saraivada de grão que caía dos céus e as fustigava.
Não haveria nesse gesto algo mais transcendente? Não haveria nesse “oferecer de corpo às sementes que em todos os momentos e tempos sempre foram abençoadas” algo que vai para além da mera banalidade das coisas?
O Sol, agora, em cores alaranjadas, descansava sobre o cume do palheiro do ti Chico Sá. O ti Adelino, ao mesmo tempo que acarrejava aos ombros as sacas de trigo que despejava na tulha, berrava pela mulher para vir apanhar as rabeiras que haviam de fartar as pitas. O ti Pailinhas e o ti Amor, como sempre, abeiravam-se do eirado, faziam conversa do tempo e avaliavam a colheita.
Lá ao fundo, na esquina da Carvalheira, o tractor puxava, com todos os cavalos que possuía, a malhadeira do Dr. Antoninho que vinha da fraga da Catrina.

António Sá Gué

(Continua...)

6 comentários:

Anónimo disse...

Olá, António!

Mais um óptimo texto. Parabéns!

As rabeiras que haviam de fartar as pitas e os pardais...

Abraço,
Isabel

António Sá Gué disse...

Olá, Isabel!

Tens razão! Eram aos bandos nos galinheiros.

Abraço,

Júlia Ribeiro disse...

Olá. Sá Gué :

Que vou dizer-lhe após ler outro magnífico "Quadro" ? Desejar mais e mais e que, sem mais delongas, os coloque em livro , para memória futura e prazer imediato .

Abração
Júlia

António Sá Gué disse...

Olá Júlia!

Estou a prepar-me para isso. Espero durante o próximo ano conseguir editá-lo. Tem que ser lançado em Moncorvo, só aí faz sentido, ou mesmo em Carviçais, já que terá muito das minhas memórias.
Vamos ver...

Um abraço.
Obrigado pelo apoio e carinho constante. :-)

Anónimo disse...

Será, seguramente, um grande livro! E se o António Sá Gué conseguir respigar por'i alguma preciosa foto desses tempos e momentos que aqui regista, mais valorizada ainda sairá a obra!...
Creio que doravante a palavra "trasmontaneidade" passará a figurar nas Enciclopédias, e com um sentido bem preciso.
Abraço,
N.

António Sá Gué disse...

Olá, Nelson!

Eu, infelizmente, não tenho fotografias desse tempo. Posso quando muito fazer fotos actuais dos locais que descrevo mas ficarão sempre eivadas da vida e a azáfama que aqui tento descrever. Seja com for, e aproveitando as tuas palavras, aqui fica o desafio: quem possuir fotografias que, de alguma forma, documentem este quadros, agradeço que me contacte. Obviamente que, desde já, me comprometo a colocar os devidos créditos.

Abraço,