Prometo ser breve, mas não garanto, como costuma dizer o dr. Almeida Santos. E pretendo que a exposição seja o mais simples possível.
Este é um livro que não uma mala de cartão, antes uma mala de viagens, viagens de dias a pé pelas montanhas até ao regresso de avião que o check in on line já foi feito pelo neto.
É um livro de lugares, afectos, desafectos, de percursos comuns na origem, de silêncios envergonhados, memórias bloqueadas e, por fim, algum apaziguamento. Sem ajuste de contas, o passado é reabilitado e gravado em letra, em memória dos que sofreram e para informação dos que esqueceram ou desconheceram. Porque, recordando uma máxima latina, verba volant et scripta manent. As palavras voam e a escrita permanece.
Duas são as personagens que tutelam este livro – a avó e o Pai Natal em chocolate, nas suas formas vermelhas, um pouco as formas da Coca-Cola. O amparo de quem ficou e as prendas que chegam dos que partiram.
Antes de entrarmos numa leitura mais pormenorizada do livro, assentemos em algumas noções básicas e outras tantas reflexões para melhor entendermos e apreciarmos o esforço de tolerância e o despojamento da autora na tentativa de compreensão da sua infância sem mãe presente, situação igual à de tantas outras crianças, filhos e filhas de emigrantes, entregues aos cuidados da avó.
Vale a pena descrever um dos gritos de revolta. E passo a citar:”Porque não me levas contigo como fazem os outros pais?
-Pois, dizes bem, minha filha! Os teus amigos têm pai e têm mãe…
-Não me digas que, ainda por cima, tenho culpa de não ter pai!? Matei-o, por acaso?
-Não foi o que disse! Mas como poderei trabalhar 14 horas por dia contigo a meu cargo?”. Fim de citação.
A avó surge no livro, sobretudo na primeira parte, como a figura tutelar de toda uma geração que só via os pais nos dias quentes de Agosto. O envio de dinheiro não compensava a necessidade do carinho.
A violência que o livro por vezes liberta é suavizada pelo sussurro poético que penetra em muitas páginas e humaniza situações dramáticas.
Na década de 60, no auge da emigração, praticamente coincidente com o início da guerra colonial, o mundo rural mantinha-se, nos seus fundamentos, imutável. A chegada a um espaço urbano sempre em permanente mutação, criou uma autêntica revolução interior nos emigrantes, aceitando o domínio francês, mas desenvolvendo a sua auto-estima, mais patente em relação aos que ficaram na terra. Os valores eram outros, sociais e económicos, o quotidiano consumista era para eles incompreensível. Não se compaginava com a poupança. Socorro-me das palavras da autora quando reflecte sobre “as discrepâncias entre subdesenvolvimento económico, social e cultural das infra-estruturas portuguesas face à opulência da realidade francesa”.
Depois havia a barreira da língua. Muitos ignoravam a própria. E então adquiriram e aportuguesaram novos vocábulos que não faziam parte do seu universo rural.
E quando começaram a vir de férias, foram alvo da inveja, uma das fontes do ressentimento, como escreveu o historiador Marc Ferro.
Lembra a propósito Isabel Mateus “a arrogância e a atitude provocadora dos que permaneceram versus aos que se ausentaram”.
Já tinham pago ao passador ( nos seus códigos de honra o primeiro dinheiro poupado era para entregar ao passador), começaram a comprar terras a quem tinham servido, num desejo intenso, no prazer da compensação, com um sentimento original e quase sagrado da propriedade privada. E construíram casas ao arrepio da arquitectura tradicional da aldeia.
As poupanças que colocavam os bancos serviam não para desenvolver as suas terras, a sua região, mas antes para serem aplicadas em investimentos no litoral e para alimentar a máquina de guerra.
Rogério Rodrigues num momento da sua prelecção.
Quando chegavam de férias, a Vila agitava-se. Eram os carros de matrícula francesa, a inveja e o ressentimento que se manifestavam em críticas mordazes, salientando o ridículo que afinal não passava de uma ostentação naive de quem tinha acesso à moeda forte.
O preço dos produtos subia, nos andores das procissões predominavam as notas francesas (muitas das festas das aldeias foram mesmo alteradas para Agosto, o mês de férias dos emigrantes), e ouvia-se um linguajar estranho, cheio de corruptelas vocabulares, assente na componente fonética que, se por um lado servia de identificação do emigrante, por outro, era compreensível a sua utilização, pois, com frequência, desconheciam a palavra equivalente em português.
Route porque não havia estradas no seu vocabulário rudimentar. Apenas caminhos ou canelhas.
Usina, porque não havia fábricas no mundo rural. Mal eles imaginavam que fábrica no português-brasileiro se diz usina.
Vacanças porque ignoravam o que eram férias.
Retraite porque nunca tinham ouvido falar em reforma.
Batiment e chantier porque os altos prédios e estaleiros nunca tinham feito parte do seu universo.
Femme de ménage, intraduzível em português na sua época, pois não havia mulheres da limpeza, antes criadas de servir, com uma conotação bem diferente e mais pejorativa.
Muitos e muitos vocábulos poderíamos analisar, não apenas nos limites da linguística mas, sobretudo, na sua explicação sociológica.
Texto: Rogério Rodrigues / Foto: João Costa
(continua)