Estação de camionagem de Grenoble, França, 16 Novembro 2010
Ei-los que regressam mais uma vez! São os mesmos que partirem à procura do pão e que, agora, andam à procura da (última) Pátria.
O convívio inicial da chegada ao local transpôs-se rapidamente para as filas dos assentos do Expresso de luxo. Assim que se sentaram lado a lado, a senhora idosa continuou a conversa com a amiga. A outra replicou-lhe, apropriando-se das suas palavras. Também ia e vinha uma a duas vezes por ano e às temporadas. A cadeira vazia do lado da janela comportava as duas bolsas e os casacos finos de malha a que o ar condicionado da hora de arrancar haveria de dar préstimo para se agasalharem. Subitamente e em consonância, as duas cabeças, praticamente unidas, viraram-se entusiasmadas para a sua direita. O casal vizinho, acomodado na fileira oposta, viajava para uma aldeia não muito distante da delas. Depressa se incendiaram em indagações que acompanhavam perfeitamente a velocidade do veículo a percorrer a estrada em direcção a Portugal. Faladora, a mulher adiantou-se:
“Já vendemos a casa que tínhamos comprado com a intenção de passarmos os nossos últimos dias perto do nosso filho. Até nem havia muito tempo que era nossa... Há coisa de dois a três anos... Mas agora que o filho, a nora e os netos se mudaram para Montpellier o que ficávamos a fazer sozinhos em Paris? Eu e o meu homem ainda andámos com a ideia comprar outra lá em baixo, no Sul. A cidade é bonita e tem um bom clima! Se não fosse pelo Mistral, durante os meses de Inverno, parecia mesmo o clima da nossa terra. Mas íamos voltar ao início?! Outras pessoas, cidade estranha, novos hábitos... Bem sabemos quanto nos custou travar conhecimento quando chegámos! Já não seria tão difícil, mas mesmo assim... Ainda temos a casa em Portugal, os bocados e família. Quando nos apetecer, voltamos em visita de turistas e eles que façam o mesmo! “
“Fizeram bem”, concordou a mesma senhora de idade. “Vê-se que ainda não são velhos e que têm saúde. Gozem mais uns anitos do nosso bom ar! Eu é que não posso dizer o mesmo. A osteoporose obriga-me a tratamentos, operações e já se sabe que em França sou melhor atendida e mais depressa. Além disso, também me fica mais barato. Vou andar neste va-vient France-Portugal enquanto puder.”
A companheira de fileira ia acenando com a cabeça para manifestar a aprovação das suas palavras. Também ela tinha escolhido a mesma modalidade. Entretanto, submergidos pelos pequenos problemas quotidianos que caracterizavam, no presente, a grande preocupação das suas vidas, não anteviram que se juntara outro compatriota à discussão. Idoso, moreno, olhos brilhantes, dançarinos e risonhos, alisava a tez da cara e passava as mãos pelos cabelos finos e brancos. Ia tratar das vinhas no Douro e dos prédios que comprara nos primeiros anos de França. Grande tolo! Moera ali dinheirinho que não recuperaria. Mas não era só isso que o preocupava. A saúde é que se sentia ameaçada todas as vezes que precisava de recorrer ao Centro de Saúde mais próximo da sua aldeia. Contudo, permanecia mais tempo a sulfatar os vinhedos ou a enxertar os bacelos dos socalcos do que em França fechado dentro de casa, ou sentado no banco do jardim a atirar farolos de pão às pombas para se distrair.
A conversa fluía ritmada e sem segredos. O tema desnudava-se aos poucos e, na consciência de cada passageiro, as angústias esbatiam-se e aligeiravam-se, devido à partilha da raiz do mesmo problema: emigração. Quando todos suspiravam de alívio e se acalmavam pelo cansaço de algumas horas de viagem já decorridas, uma voz sumida, vexada e consumida, por ter equacionado inúmeras vezes a questão na intimidade, assumiu de frente o cerne do dilema: “E o que faremos quando não tivermos força para este vaivém?”
“Já vendemos a casa que tínhamos comprado com a intenção de passarmos os nossos últimos dias perto do nosso filho. Até nem havia muito tempo que era nossa... Há coisa de dois a três anos... Mas agora que o filho, a nora e os netos se mudaram para Montpellier o que ficávamos a fazer sozinhos em Paris? Eu e o meu homem ainda andámos com a ideia comprar outra lá em baixo, no Sul. A cidade é bonita e tem um bom clima! Se não fosse pelo Mistral, durante os meses de Inverno, parecia mesmo o clima da nossa terra. Mas íamos voltar ao início?! Outras pessoas, cidade estranha, novos hábitos... Bem sabemos quanto nos custou travar conhecimento quando chegámos! Já não seria tão difícil, mas mesmo assim... Ainda temos a casa em Portugal, os bocados e família. Quando nos apetecer, voltamos em visita de turistas e eles que façam o mesmo! “
“Fizeram bem”, concordou a mesma senhora de idade. “Vê-se que ainda não são velhos e que têm saúde. Gozem mais uns anitos do nosso bom ar! Eu é que não posso dizer o mesmo. A osteoporose obriga-me a tratamentos, operações e já se sabe que em França sou melhor atendida e mais depressa. Além disso, também me fica mais barato. Vou andar neste va-vient France-Portugal enquanto puder.”
A companheira de fileira ia acenando com a cabeça para manifestar a aprovação das suas palavras. Também ela tinha escolhido a mesma modalidade. Entretanto, submergidos pelos pequenos problemas quotidianos que caracterizavam, no presente, a grande preocupação das suas vidas, não anteviram que se juntara outro compatriota à discussão. Idoso, moreno, olhos brilhantes, dançarinos e risonhos, alisava a tez da cara e passava as mãos pelos cabelos finos e brancos. Ia tratar das vinhas no Douro e dos prédios que comprara nos primeiros anos de França. Grande tolo! Moera ali dinheirinho que não recuperaria. Mas não era só isso que o preocupava. A saúde é que se sentia ameaçada todas as vezes que precisava de recorrer ao Centro de Saúde mais próximo da sua aldeia. Contudo, permanecia mais tempo a sulfatar os vinhedos ou a enxertar os bacelos dos socalcos do que em França fechado dentro de casa, ou sentado no banco do jardim a atirar farolos de pão às pombas para se distrair.
A conversa fluía ritmada e sem segredos. O tema desnudava-se aos poucos e, na consciência de cada passageiro, as angústias esbatiam-se e aligeiravam-se, devido à partilha da raiz do mesmo problema: emigração. Quando todos suspiravam de alívio e se acalmavam pelo cansaço de algumas horas de viagem já decorridas, uma voz sumida, vexada e consumida, por ter equacionado inúmeras vezes a questão na intimidade, assumiu de frente o cerne do dilema: “E o que faremos quando não tivermos força para este vaivém?”
12 comentários:
A crise que envolve o sistema capitalista e, especialmente os países centrais, é devastadora, profunda e de longa duração.Ao contrário do que os meios de comunicação procuram difundir, a crise não se encontra sozinha em Portugal.Mas a crise também tem particularidades, como todas as crises do sistema capitalista, uma vez que cada crise tem consigo um conteúdo novo, neste caso as viagens destes emigrantes/imigrantes/migrantes, a especulação, a crise das empresas, não é só em Portugal, ou seja todas fojem para o mundo novo, penso que todos sabem onde é ( Oriente ), o mundo capitalista assim o quiz.
Mas vejamos o que se passa primeiro surge a crise económica, segundo a crise social,por fim a crise política.
Neste comentário digo não vejo os portugueses a emigrar para França ou para a zona europeia porque tudo está para dar o fim.
E esta crise não é a crise igual ao após guerra, esta terá mais duração e muitos de nós nem sabe o que está para acontecer, os campos outrora abandonados deverão ter novos donos, porque os tempos que se avizinham não serão bons, factores do mundo novo em construção.
Esperamos que os transmontanos tenham força nesta hora de combate.
Tony_Mós Blog
Obrigada Tony pelo comentário. A emigração do passado que, no caso da dos anos 60, se estende pelo presente não foi nada fácil. Como vimos pelo texto, as sequelas ainda andam por aí a "salto". A do presente também tem as suas dificuldades. A todo o momento surgem notícias acerca dela nos meios de comunicação social ou através de amigos, o que ainda muito mais nos afecta, porque mais próxima "a história" que empurra mais uma alma para a aventura fora da pátria com todas as consequências que isso acarreta. Ultimamente, tenho tido conhecimento de alguns que foram para França, aliás encontrei-me com um jovem em Metz que deixou o Douro para trabalhar em França na contrução civil. Na altura estava, inclusive, desempregado. Mas mesmo nessa situação, tinha mais apoio em França do que se estivesse em Portugal.
Sendo também eu emigrante em Inglaterra, quando viajo para qualquer parte do país tenho constatado que as estações de serviço estão inundadas de portugueses a limpar as mesas, as casas de banho... Distinguem-se pela compleição e pela ligeireza com que trabalham.
Também tenho tido notícia que algumas pessoas, em Portugal, estão a deixar as cidades e a deslocar-se para o campo. Esse seria um aspecto positivo no meio da crise. O retorno à reabilitação das nossas propriedades, ao investimento nas nossas terras. Há alguns jovens agricultores que estão a trabalhar e a produzir com afinco, com muito entusiasmo. Um desses exemplos plantou-me há duas semanas uma terra de castanheiros que herdei de meu pai, com apenas quatro anos.
Penso que os transmontanos (e os portugueses) terão força para se movimentarem e resolverem a sua vida. Ainda têm o exemplo do passado à sua frente para lhes dar incentivo e coragem!
Cumprimentos para as pessoas de Mós. Tenho aí bons amigos e os meus padrinhos. Um grande abraço para todos!
Isabel
Mais um excelente apontamento da Isabel, com depoimentos na 1ª. pessoa, sobre a questão acutilante da nossa Emigração. Agora que aí vem o Natal, decerto teremos, de novo, o vai-vém de/para Franças e Araganças, mas, de facto, até quando??
N.
Acordar
Deixaste o campo abandonado,
Onde bebeste do cálice da Vida
E comeste do Pão com amor semeado.
Deixaste a Luz do Sol, das estrelas, da Lua,
Com seus naturais encantos e mistérios
Em dias límpidos e noites de sonhos livres
Sem imaginar viver um dia sem o ar da liberdade.
Foste. Livre ou obrigado, foste!
Encontraste-te em cidade sem identidade, perdido,
Em cidade sem sítio onde começa nem acaba.
Procuraste, atarantado, o norte que não descortinaste.
No que te parecia ser o raiar de um novo dia,
Sem saberes por vezes se sonhavas ou deliravas,
Procuraste o nascer do Sol que não encontraste.
Cansado, prostrado, suado, ao fim de cada duro e longo dia,
Procuraste o pôr-do-sol que antes, tranquilo, tanto admiraste!
Agora, enraivecido, em nenhum dia o pôr-do-sol acontecia.
Aquele pôr-do-sol, com que o sonho ainda hoje te adormece,
No findar de cada dia, deleitado, jamais encontraste.
Encontraste espessos mantos sem saberes de quê,
Nem porquê, e que culpa tu tinhas, que mal praticaste,
Envolvendo-te o corpo, cobrindo o universo,
Enevoando-te o pensar do já perturbado pensamento.
Lembras-te, com intensidade ou apenas só vagamente,
Daquela luz tépida da noite, ora difusa ora intensa,
Em noite de luar, com sombras de nuvens vaporosas
Viajando livres com o vento, soltas no doce luar.
Acorrentado, lembras-te livre em mundos transparentes,
Em noites claras de luar e de estrelas em campos sem findar.
Com suores, olhas a luz dos tiros rasgando noites sem luar
E estremeces no aclarar das noites pelo brutal incendiar.
É hora de acordar!
É a hora de voltar!
José Rodrigues Dias
(in “Braços Abraçados”, Tartaruga Editora, 2010)
Obrigado J. Rodrigues Dias, por partilhar connosco este belo poema de emigração! - Espero que os "Braços Abraçados", recentemente editado, esteja a ter o sucesso que merece!
Para quem não conhece, o Doutor J. Rodrigues Dias é um trasmontano (natural de Talhas, Macedo de Cavaleiros), também "emigrado" por terras do Alentejo, onde foi Professor das áreas da Matemática e informática na Universidade de Évora. Para além de inúmeros artigos científicos, dedica-se também à poesia, sendo de destacar o recente livro em que se inclui o poema com que o autor nos brindou neste blogue. Bem haja, com votos dos maiores sucessos!
N.
Concordo com o N.: bonito poema o seu!
Fico feliz que este meu "Post" tenha podido acariciar esta poesia, mostrando-nos a todos o sofrimento do "emigrante" que lhe emprestou a sua beleza.
Muito obrigada pelo momento que nos proporcionou! Desejo o melhor para o livro, que espero vir a ler.
Nota: A bela cidade de Évora tem muitos encantos! Com 18 anos, inspirou-me a simplicidade da frase que me fez ganhar de uma alentejana uma taleiguinha de ervas campestres: "Em Évora vive-se na História". Mas suspira-se sempre pelo cantinho (mais belo ou não)que nos viu nascer!
Isabel
Caros Isabel e Nelson:
Agradeço as palavras simpáticas
do MendoCorvo (pela pena do Nelson) e da Isabel.
Para a Isabel, envio a imagem que mais pura
recorda do cheirinho das pedras que falam
desta cidade que ajudámos e ajudamos a polir
no quotidiano que percorremos
pelos ermos da vida que calcorreamos.
Para o Nelson (que pessoalmente não conheço,
mas que muito admiro, pelo que deixa entreler
da alma por frinchas dos seus comentários),
uma palavra especial de agradecimento:
o último poema dos “Braços Abraçados” (“Descobrir”)
foi por ele analisado e “criticado” (em termos literários)
aqui, num blog que antecedeu este.
Decerto não sabia nem imaginaria isto, Nelson!
Aí, fiquei em dívida consigo.
Muito obrigado!
PS: Sendo de Talhas, vivendo em Évora, casei em Moncorvo…
Évora, 2010-11-25
J. Rodrigues Dias
Caro Doutor Rodrigues Dias,
Muito Obrigado pelas suas simpáticas palavras, na parte que me toca. Sim, de facto não sabia que tal poema viria a fazer parte dos "Braços" que entretanto saíram. Como também não sabia da sua ligação a Moncorvo, por via matrimonial (agora entendo o seu interesse por Moncorvo e pelos nossos blogues). Continue sempre, aguardando a oportunidade de uma visita, logo que venha cá pelas terras das Origens.
Grande Abraço,
N.
Olá, Isabel:
Já tinha passado por aqui a correr e, também de fugida, li o seu texto. Agora, enquanto a netinha dorme, vim lê-lo com mais sossego.
Gosto da sua escrita, sã e escorreita; gosto da linguaguem simples e clara; e gosto sobretudo do final dos seus textos: directos e certeiros que nem uma seta bem apontada.
Um grande abraço e obrigada pelo voto de boas melhoras para a minha nora.
Um beijinho para a Giulia.
Júlia
Caro Dr. Rodrigues Dias:
Peço perdão por não ter dito nada sobre o seu poema. Está realmente na hora de acordar. Está na hora de todos acordarmos, os que foram e os que ficaram, porque o pesadelo é bem real e exige de todos nós a união na luta.
Amigo Dr. Dias: o Nelson é uma valente caixa de surpresas. Não sabe só de pedras e de minas; sabe de Arqueologia, Orografia, Geografia, História, Literatura (com especial destaque para a poesia), sabe de Pintura, Música e ... etc. Para além de escrever muito bem, pois domina o Português com rigor e precisão.
O nosso amigo Nelson é uma mais-valia para Torre de Moncorvo, não acha?
Abração para ambos
Júlia
Olá a todos os que têm vindo a colaborar com comentários em relação a este texto sobre a emigração. Foram muito gratificantes! Este é, sem dúvida, um tema cada vez mais pungente nos tempos que correm. É preciso reflectir, é preciso acordar, é preciso agir... Escrever acerca dele, falar nele pode já ser um princípio.
Fico contente que o Blogue continue a ser um local de encontro e de encontros. Que nos aproxime, mesmo que estejamos longe fisicamente. É uma mais-valia para Moncorvo e as suas gentes, como diz a Júlia (uma voz carinhosa que faz Aqui sempre muita falta).
Júlia, aproveito para lhe retribuir obeijinho da minha Giulia.
Um abraço,
Isabel
Agradeço a superlativa generosidade da Drª. Júlia, na parte que me toca, desculpando-lhe o exagero à conta da Amizade, pois não passo de um pobre ser humano carregado de defeitos e insuficiências. Quem é efectivamente a Escritora, contista sem par, professora emérita, germanista, Mulher de luta? Pois não digo, mas todos sabemos. E, como diz a Isabel, é sempre um prazer receber a sua visita neste cantinho que também é seu.
Uma das coisas que costumo verificar é aquele mapazinho que está ao fundo da coluna do lado direito, onde diariamente aparecem os pontos de acesso ao blogue (alguns em simultâneo) e é extraordinário ver as incomensuráveis distâncias a que se encontram as pessoas que nos visitam (a maioria são moncorvenses espalhados pelas sete partidas do Mundo): com epicentro em Moncorvo, a maioria acede de várias cidades e vilas de Portugal, mas igualmente de toda a Europa Ocidental (Espanha, França, Inglaterra, Suíça, Alemanha, Itália, Polónia...), com o Brasil em 2º. lugar no ranking e muitos acessos a partir do Canadá (quem é que estará numa localidade canadiana chamada London?), Estados Unidos da América, Bolívia (aqui vai um abraço para o nosso Cônsul honorário, o amigo Fernando Estácio, moncorvense em Santa Cruz, onde representa Portugal nesse país). Somos um povo de emigrantes, por isso os textos da Isabel sobre a Emigração são bastante pertinentes.
Para esses nossos conterrâneos e/ou seus descendentes, vai um grande abraço a partir de Torre de Moncorvo!
N.
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