segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Quadros da transmontaneidade (24)

As minas do Lagar Velho

As minas do Lagar Velho, para mim, que já não as vi em laboração, que já não vivi a febre do volfrâmio, eram um local de brincadeira e de conhecimento interior. Ir às minas era poder espraiar o olhar pelo anfiteatro dos montes e correr, desalmadamente, sem medo de tropeçar nos lisinhos terraços fronteiros. Ir às minas era ter a coragem de entrar nas catacumbas dos meus medos. Entrar nas minas era como descer em mim e, na minha escuridão, enfrentar as almas penadas que só a luz do dia consegue destruir. Entrar na escuridão das minas era penetrar no meu inconsciente, avançar de olhos arregalados, tacteante, ir ao encontro da fímbria de luz que rebrilhava lá ao fundo na fenda húmida da rocha e, depois de empunhada como espada flamejante, destruir todos as incriadas figuras que desejava ardentemente dominar.

ANTÓNIO SÁ GUÉ

2 comentários:

Júlia Ribeiro disse...

Um texto fantástico para dia 1 de Novembro : a descida às minas que é simultaneamente uma descida ao mais fundo do próprio ser !

E parabéns pelo lançamento de mais um livro. Que seja um grande sucesso.

Abração
Júlia

Anónimo disse...

Concordo. Um texto susceptível de análise psicanalítica. A entrada nas entranhas de uma mina (qualquer que seja) tem sempre o seu quê de comunhão com a Mãe-Terra e de descida ao subconsciente. É o mundo do Ínfer (mundo Inferior = Infer > Inferno). Foi nesse mundo inferior que Ulisses, à procura da mãe falecida, viu os castigos ou penas por que passavam certos mortos. Nesse sentido, é um texto apropriado para o dia dos mortos... Por isso os mineiros, ao desafiarem esse estranho mundo, entravam num limbo ou num limiar entre o mundo dos vivos e dos mortos - de que o caso recente dos mineiros chilenos da mina de San José foi um exemplo bem vivo. Ainda que sem a perigosidade das minas chilenas, as minas do Lagar Velho merecem bem uma visita (tem é que ser com gente que saiba) - fica a "viagem" marcada para o próximo programa Ciência Viva do PARM e/ou Museu do Ferro, com visita guiada pelo A. Sá Gué. Vale?
abração,
N.