A matança do porco: desesperos femininos
"O raio do reco pressentiu que o seu dia tinha chegado”, pensava a Ti Maria Júlia depois de ter ido à cortelha vê-lo com vida pela última vez. Já tinha dito ao Chico, que não o queria ver morrer. “Até parecia tristonho”, condoía-se ela, “nem se aproximou da pia para abocanhar a vianda como fazia sempre mal pressentia a minha presença.”
Fechou o cortelho com a tranca e virou costas. Abanou a cabeça, como que a afastar aqueles pensamentos. Não ia chorar por ele, era o que faltava, que Deus criou os porcos para livrar os homes da fome, para mais nada. Eles não são como nós, embora às vezes não pareça. Aquela era a razão da sua existência, mas que lhe dava dó, dava, foi um ano inteiro a cevá-lo do bom e do melhor. E lembrava-se das muitas caldeiras de nabiças escaldadas, das muitas cargas de castanhas acarretadas, dos muitos quilos de farelo comprados, da muita folha de olmo ripada, e agora, de um momento para o outro…
António Sá Gué
(Continua...)
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6 comentários:
viva António! grande "reentrée" - primeiro o forno, agora, com a sua licença o "reco"!... realmente, também eu sentia (e sinto) essa ambivalência de sentimentos que acometeu a tia Maria Júlia: se por um lado gostamos do bô salpicão, chouriça, morcela ou presunto, por outro lado, é bem triste a sina do nosso irmão porco (como diria S. Francisco d'Assis), essa a de ser cebado pr'ó dia fatal... e poucos lembra, quando lambem os beiços, de agradecer o Sacrifício e a "entrega" (ainda que pouco ou nada voluntária) do pobre bicho... Enfim, é a sina de alguns o terem de dar o sangue e a vida para que outros medrem, se regalem, se refastelem... Mais gratos eram os nossos antepassados de há mais de 2000 anos, que ao menos entronizavam à categoria de divindade os irmãos recos e javardos, como se sabe pela porca de Murça, ou o javali das Cabanas de Baixo (infelizmente levado com mais uns fragmentos de outros irmãozinhos, para o Museu Nacional de Arqueologia, na Lísbia, por onde jazem...). Fiquemos por aqui.
Em tempos de matanças (que já poucas há, destas), se matam o reco, viva o Reco!
N.
Olá, Sá Gué:
Para quando a edição e publicação destes belíssimos quadros ?
Fico , creio que ficamos todos, a aguardar.
Um abraço
Júlia
Olá, Júlia!
Talvez seja uma boa ideia, mas a alma transmontana é tão grande e os quadros são ainda muito poucos, que é necessário dar tempo ao tempo. Talvez uma obra dessas mereça maior profundidade, e não sei se tenho arte para a conseguir captar na sua plenitude.
Abraço.
Pelos quadros apresentados, a plenitude está captada. Faça o favor de partilhar essa arte.
Abraço.
Jorge.
Para o Jorge:
Não sei se tenho, meu caro. Com tempo talvez lá chegue. Em boa verdade, para livro parece-me ainda pouco. É preciso continuar a escavar na nossa memória colectiva.
Abraço.
viva António,
também acho q sim, o arquivo aqui fica no blogue. Então quando a "colecção" dos quadros estiver mais compostinha, lá teremos edição em papel. Fica combinado. E no que toca a "escavar" a dita memória, conta comigo (escavações é comigo, eheh)
abraço,
N.
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