domingo, 16 de janeiro de 2011

Quadros da transmontaneidade (30)

A matança: os preparativos

O dia acordou frio, como era preciso, para curar bem a carniça. O Joaquim Cortador, homem habituado a estas andarilhanças, afiava a faca junta à pia das pitas onde, de quando em vez, a lavava e lhe tirava as partículas da pedra abrasiva. Depois, passava o fio entre o indicador e o polegar, lentamente, como se estivesse à procura de alguma falha e, de seguida, experimentava-o na unha do polegar esquerdo. Como matador afamado que era não queria falhar. Não queria passar nenhuma vergonha, tinha que lhe acertar à primeira. Não queria que durante a chamusca, mal o bicho sentisse a quentura da palha a arder, e ainda com algum sangue quente nas veias se levantasse e desatasse a correr rua fora, como se contava em todas as matanças.
O Chico, de regador na mão, lavava o banco que durante todo o ano esteve acantoado, sem serventia, acantoado no palheiro. O Manel da Lage, já lá vinha com a samarra pelos ombros. A lareira já crepitava, rodeada de tisnadas panelas de ferro que haviam de derreter os rijões.
- Atão vamos lá! – instigou o Chico quando achou que a equipa estava pronta.
Fez um sinal afirmativo com a cabeça, agarrou a corda já com o nó corrediço preparado e dirigiu-se para o cortelho. Entrou. O grupo ficou à entrada a dar palpites, a estimar o peso, a estudar-lhe as manhas. O reco deu duas roncadelas e refugiou-se no canto mal o viu aproximar-se. Com o laço ao dependuro na mão direita e na tentativa de o acalmar foi proferindo sons mansos e brandos, leves palmadas no lombo, como se o quisesse enganar, esperançado que ele desejasse suicidar-se e abocanhasse o isco que, com todo o jeito, lhe colocava à frente dos olhos, no fundo, como se ele não percebesse o destino trágico que o aguardava. Nada! Foram várias as tentativas para lhe meter o laço na boca mas só pela força o conseguiram. Só depois de várias voltas ao cortelho, depois de vários arranques capazes de assustar os seus parentes javalis a operação foi consumada. Agora, já nada o salvaria do trágico destino. Já de nada lhe valiam os grunhidos estridentes que se faziam ouvir nas redondezas, já de nada lhe valiam os safanões caprinos que na tentativa de se soltar da corda esticada, e bem presa ao queixal, o encaminhava em direcção ao banco.

António Sá Gué

(Continua…)

3 comentários:

Anónimo disse...

Tão real quanto os cheiros que ficavam aprisionados à volta do banco, encobertos pelo frio.
Texto delicioso.
Obrigado, António.
João Costa

Anónimo disse...

O jornal Repórter do Marão publica na última edição uma reportagem fotográfica sobre a matança do porco. Esta narrativa ficava lá "a matar".

João Costa

Júlia Ribeiro disse...

Olá, Sá Gué:

Com a história do sumagre, havia-me escapado este "Quadro" (nº 30). Só quando cheguei ao nº 31 é que reparei que tinha de voltar cá baixo.
Agora vou subir ao andar de cima.