sábado, 29 de janeiro de 2011

Quadros da transmontaneidade (32)

A Matança: chamusca

Para quem não conhecer o verdadeiro espírito da matança há-de crer que depois do cerimonial de morte, sempre muito masculino, tudo terminou. Depois da morte consumada do bicho, depois de o sacrifício ter sido aceite pelos penates, é tempo de cada um recolher a casa, voltar à rotina religiosa do ano, voltar-se para a venerável Tellus, esperar pelo abrolhar, rezar pela sua floração, agradecer-lhe as colheitas, mesmo que não tenham sido abundantes. Mas, não! Este é apenas o princípio do fim, o princípio da festa que há-de terminar lá pela tarde dentro.
- Já não mexe – disse o Ti Madanelo, ao mesmo tempo que lhe assentava uma palmada no lombo, apanhando todos de surpresa. – Este é bem melhor que o do ano passado – como que a gabar-lhe o tamanho dos presuntos.
- O do ano passado já não lhe tenho o paladar – respondia-lhe o Ti Chico, para quem o último era sempre o melhor.
Agora, que a agonia do animal terminou, a descontracção parece ter regressado. As larachas sucediam-se, voltaram as conversas que se têm entre homens, voltaram os dichotes sobre a pujança do animal que, no seu estertor de morte, ainda foi capaz de espinotear e “dar nas partes masculinas” ao ti Zé Maria.
Arrumado que foi o banco, ao qual regressaria mais tarde para ser devidamente raspado e aberto, o animal descia agora aos toros de amendoeira, paralelamente colocados, em jeito de pira, onde havia de ser devidamente chamuscado: purificado pelo fogo. Será? Haverá, nesse gesto, também algo de mais transcendente?
As cerdas crepitavam, o calor emanado pelos fachoqueiros de palha obrigava o grupo a raspar a pele do animal com sachos e calagouças, sempre à distância, sempre a verbalizar umas carvalhadas com alguma mofa que pousou no pescoço, ou a unha que não cedia e que, nem mesmo as mãos calejadas do Ti Chico suportavam tamanho calor.

António Sá Gué

(Continua…)

2 comentários:

Júlia Ribeiro disse...

Olá, Sá Gué:

Vim ler a "Chamusca". Por trás da queima das cerdas , e para além dela, quem sabe se não existirá mesmo algo de "purificação pelo fogo" .

Abraço
Júlia

Anónimo disse...

Gostei imenso do uso do vocabulário típico alusivo à matança. São palavras com uma certa musicalidade e, em simultâneo, práticas e adequadas às realidades que descrevem.

Abraço
Isabel