sexta-feira, 13 de maio de 2011

Quadros da transmontaneidade (44)

As malhas

Burro velho não toma andadura, bem podia ser o dito que assentava na perfeição ao Ti Adelino. Coitado, agarrado à tradição, afeiçoado a um outro mundo, que ninguém lhe falasse em malhadeiras. Não era naquela traquitana que entrava o seu trigo, nem mesmo o centeio. Nem as animálias o comiam como deve ser. Há anos que malhava com a ajuda do Manel do Canto e do Joaquim da Eira, amigos de sempre, e não era agora, aos sessenta, que ia mudar. Nem pensar! Já tinha feito constar que na próxima terça a laje estava por sua conta. A mulher, a Manuela, na véspera, pela noitinha, já pela fresca, depois de lhe dar a malga de caldo que ele devorou em ruidosos sorvos, foi varrê-la com a vassoura de esteva que tinha amanhado, no caminho de regresso a casa, nessa mesma tarde. Varreu-a de alto a baixo: todas as cagalhetas das cabras e as palhas avelhentadas que se acumulavam nos refegos da fraga foram amontoadas numa ponta, para que, na manhã seguinte, se eirasse pela primeira vez bem cedinho.
E assim foi. Mal o Sol amarelou o cocuruto da medas, onde o Ti Joaquim se encarrapitava para tirar os primeiros molhos, fez-se o primeiro eirado. Um a um, os molhos foram sendo desatados e, com mestria, espalhados em longas esteiras sobrepostas, na miraculosa e imponente fraga e que o Ti Adelino acreditava ali ter sido colocada, por sapiência divina, de propósito para aquele fim. A fraga era agora uma manta de longos retalhos de espigas loiras. As anfractuosidades desapareceram, tornou-se ainda mais uniforme. As tiras de espigas sobrepostas davam-lhe um alinhamento, uma continuidade e uma graciosidade que, aos olhos da criançada, nunca devia desaparecer e onde era apetitoso brincar.

(Continua…)

António Sá Gué

3 comentários:

Júlia Ribeiro disse...

Olá, Sá Gué:

É um gosto, um prazer imenso, ler os seus "Quadros" . Já o disse, mas nunca é demais repeti-lo.
Ele são os gestos, as cores, os cheiros ...

Obrigada por partilhar as suas memórias connosco.

Um grande abraço
Júlia

António Sá Gué disse...

Obrigado. :-)

adalmife disse...

Ao ler este texto senti as emoções de quando era criança e os meus pais trilhavam o trigo na eira com animais. Senti a palha na pele, o calor abrasador do verão, o cheiro do restolho e o sabor das migas de "cavalo cansado".Obrigado