quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Quadros da transmontaneidade (18)



A Candeia

O Ti Marcolino, que Deus tem, tinha uma sagacidade, uma agudeza de espírito que apelido de pícara, mas sem a conotação de patife ou velhaco que, eventualmente, a palavra possa ter. Aquela sagacidade genuína, que já nasce com a pessoa, talvez, ou então, que se aprende ao longo dos anos de uma vida de trabalho intenso. Vamos chamar-lhe malícia benigna.
A explicação, que se impõe, vem a propósito de um pequeno episódio, que podia ser anedótico, mas em boa verdade não é.
A outra personagem da estória é a D. Aninhas, o oposto de pessoa. Mulher na casa dos 50, ou mais, solteirona, rica, muito compenetrada das suas virtudes, muito próprias,era tão arreigada aos preceitos religiosos que pode, talvez, apelidar-se de beata.
O Ti Marcolino, nesse dia, tinha sido chamado à jeira para pisar as muitas arrobas de vinho que tinham sido colhidas nos dias anteriores. O pio ficava acantoado na farta mas escura adega. A luz de um dia setembrista, já de si nebuloso, entrava apenas por uma porta pequena, que ficava lá ao fundo, e dava acesso ao quintal interior. Naquela obscuridade sobressaía a luz de uma candeia, dependurada na parede, junto ao pio, onde quatro homens desde as oito da manhã, entre eles o Ti Marcolino, davam voltas e mais voltas no pio porque o precioso néctar assim o exigia. Ao longo da parede esquerda percebia-se a silhueta (e notava-se porque os olhos do jeireiros já estavam adaptados aquela obscuridade), de seis bojudas pipas, de muitos almudes, alinhadas, onde a D. Aninhas fazia pequenos preparativos que haviam de facilitar a trasfega do vinho.
O Ti Marcolino pedia aos anjos e a todos os santos que a D. Aninhas desse por finda a tarefa e deixasse de por ali cirandar, mas ela, nada! Por ali continuava, ora para trás, ora para a frente, um pouco alheada do que se passava à sua volta. O Ti Marcolino, farto de esperar, não está com meias medidas, apaga a candeia e, ali mesmo, no canto, virado para o lado de fora, alivia a bexiga. A D. Aninhas, a crer que alguma rabanada de vento tivesse apagado a única fonte de luz, vai, lentamente, tacteando, dir-se-ia às apalpadelas, em busca da candeia.
De repente ouve-se um “ai” medonho, vindo das profundezas da alma.
Com a tal agudeza de espírito, que falei inicialmente, o Ti Marcolino ao sentir as mãos da venerável senhora nas partes mais íntimas responde-lhe:
- Queimou-se minha senhora, agarrasse pelo gancho que o bico estava quente!

ANTÓNIO SÁ GUÉ

3 comentários:

Anónimo disse...

Grande António,
Simplesmente hilariante!
abçº.
n

vasdoal disse...

Uma delícia! É caso para ficarem eternamente com a candeia às avessas, ou talvez não...

abraço João Costa

Júlia Ribeiro disse...

Mas que estória levada da breca !!!
A esta hora, só esta me faria rir.
E o comentário do Vasdoal não lhe fica atrás.

Abraços para todos
Júlia