segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Quadros da transmontaneidade (21)

O vinho

O Ti Carraspana, que Deus tem, e que lá esteja muitos anos sem nós, gostava do palheto que todos os anos colhia na pequena vinha que tinha lá para as bandas do Chavascal. Gostava tanto que, talvez por isso, foi-se desta para melhor ainda na flor da idade. Durante os primeiros anos de casado, ainda se aguentou no trabalho, mas à medida que o tempo foi passando o vício foi-se entranhando no corpo e, por fim, já ninguém lhe estranhava nada. Contavam-se as mais variadas peripécias, umas seriam verdade, outras mentira, mas, seja como for, ele bem podia ser considerado o bobo da aldeia.
Não parava em casa. Até parecia que tinha medo que lhe caísse em cima. Durante o dia ninguém o via, à noite, depois de cear, lá ia ele. Aquilo já nem era ceia, era um pisco a comer, uma malga de caldo, e pronto. Ele nem dormia bem se não fosse fazer serão ao café Central. A mulher não dizia nada, já não valia a pena falar. Quando vinha para se deitar, sempre tarde e mal, raramente chegava escorreito, umas vezes mais, outras vezes menos, umas vezes com um grão na asa, outras de caixão à cova, mas não lhe perdoava. Tinha uma coisa boa: não tinha maus vinhos, estava sempre tudo bem com ele, tudo se lhe assentava.
Uma noite, chega a casa mais cedo que o costume, pé ante pé, tão devagar que quando a mulher se apercebeu da sua chegada já ele estava a entrar pelo quarto dentro. Com o desembaraço que se lhe conhecia adverte-o logo:
- Ó home, tu não acendas a luz que me dói tanto a cabeça.
Ele assim fez. Às escuras descalçou as botas e atirou com a roupa para cima da cadeira que trastejava o acanhado quarto. Enfiou-se na cama, encostou-se à mulher e, ainda com algum tino, apercebeu-se que há um par de pés a mais, na cama.
- Hum… ó mulher estão aqui outros pés!
- Estão nada, são os meus, tu é que não estás bom da cabeça… Dorme e pronto!
O Ti Carraspana, por instantes, fica naquilo que lhe parece, permaneceu calado durante breves minutos, já a mulher pensava que o tinha convencido. Enganou-se. Depois de confirmar novamente que existiam, efectivamente, três pares de pés na cama, volta a insistir:
- Ó mulher tu não me enganes, está mais alguém deitado desse lado da cama? Já vou acender a luz.
home do diacho, tu não estás bom da cabeça. Tu não faças isso que me dói tanto a cabeça.
Mas ele não quis saber. Ergueu-se e, cambaleando, acendeu a luz. A mulher, já não sabia o que fazer, sabe Deus o que lhe passaria pela cabeça. Sabe Deus que crimes horrendos iriam acontecer naquele quarto. Então, o Ti Carraspana, ainda com a luz de 80 voltes a ferir-lhe os olhos, vira-se para a cama e, de forma desconcertante, avisa-os:
- Ó Sr. Américo, não é que eu me importe, isto é só para ela não ser teimosa.

ANTÓNIO SÁ GUÉ

3 comentários:

Anónimo disse...

Realmente desconcertante. De onde se prova que esse ti Carraspana estava muito à frente! - Tá-se mesmo a ver que isso foi estória inventada lá na taberna para arreliar o pobre e se divertirem à conta. Nos tempos em que não havia telenovelas e outros entretenimentos televisivos, o humor sarcástico aldeão tinha assim as suas vítimas. Outras formas de trasmontaneidade, já que, como bem notou Rentes de Carvalho, a aldeia real (conceito obviamente extensivo à vila) tinha a sua quota-parte de perversidade...
N

Anónimo disse...

Dá-se uma bela gargalhada no final do texto. Ainda bem que já havia luz, pois com a candeia seria tudo mais difícil... Mas lá que o ti Carraspana tinha os seus princípios, lá isso tinha!

Isabel

Júlia Ribeiro disse...

Regressada de duas semanas de férias por terras sírias e jordanas (os olhos cheios de coisas espantosas e a pele curtida por um calor abrasador - entre 42 e 47 graus) , foi uma frescura ler o texto do Sá Gué.
Tal como a Isabel dei uma bela gargalhada. De facto, princípios são princípios !!