segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Felgar, Festa de N.ª Sra.ª do Amparo, 1943

Aspecto da festa do Felgar de outros tempos - anos 60 (Arquivo particular)

Como nos foi prometido pela Drª. Júlia Ribeiro, em comentário ao "post" sobre a Festa do Felgar, aqui está o conto (verídico) sobre uma ocorrência da sua infância, na Festa do Felgar de há muitos anos:

Largo da Capela, pelas 9 horas da manhã.

Não sei se a festa nesse ano coincidiu com o meu aniversário. Sei que eu andava de palamenta rica: vestidinho vaporoso cor-de-rosa, com folhos e laços. As pessoas que vinham em grupos para a missa, diziam “Que linda boneca”. Eu olhava espantada, porque não via boneca nenhuma. A minha avó respondia “Muito obrigada”. Eu mais espantada ainda, porque aquelas pessoas não tinham comprado amêndoas nem licor. A minha mãe, radiante de frescura e felicidade, também respondia qualquer coisa que eu não entendia. Mais tarde soube que dizia : “A quem meu filho beija, meu coração adora”.

Mas vamos lá começar a prometida estorinha: andava eu por ali a brincar, de vestido cor-de-rosa, enquanto a minha mãe e a minha avó chamavam os fregueses, melhor dizendo, as freguesas, pois eram as mulheres quem tinha voto na matéria, “Ah, amiga, veja esta amêndoa! Olhai, qu’alvura, até os olhos cegam nela!” .

(A minha mãe e a minha avó vendiam amêndoa coberta, súplicas, cavacas , económicos e licor. Era uma forma de, em dois meses de verão, ganhar o dobro do miserável salário de camponesas durante os outros dez meses do ano).

Era antes da missa e do sermão que apareciam as boas freguesas: aquelas que queriam a amêndoa logo ao abrir dos sacos, sem um grão de poeira. Eram as que mandavam encomendas para os familiares nos Brasis, que nesse ano não tinham podido vir. Regateavam. Pagavam menos dois ou três mil reis, mas a minha mãe retirava-lhes cem gramas no peso. E toda a gente ficava satisfeita. Também vinham os próprios brasucas, mais as esposas, gordalhufas, cheias de cordões e anéis de ouro, para levar amêndoa coberta a patrões e amigos lá no Brasil. Pagavam com fartos rolos de notas que , impantes, desdobravam aos olhos cobiçosos dos menos afortunados.

Por último, já quase a missa a começar, veio um casal, aí nos seus trintas. Pediram um quilo de amêndoa, mas em três sacos, que em casa ela dividiria melhor. Depois da missa voltaram, fizeram festas à menina, que é linda c’mo sol e perguntaram se podiam levá-la a almoçar com eles. “Estamos ali, numa sombrinha atrás da capela”. “Muito obrigada, mas a minha filha não sai daqui”. “Que pena! Temos cabritinho assado no forno e um arrozinho... Até já estendi uma manta, para a menina não se sujar. Venha ver”. “Agradeço, mas já disse: a menina não sai daqui”. “Pronto, mulher, deixa lá” disse o homem. E virando-se para a minha avó ” Mas se estão com algum medo, a avó pode vir também e come connosco. Gosta de cabrito assado?”. A minha avó achou que não tinha mal nenhum. Pegou-me pela mão e fomos até à tal sombrinha. De facto, lá estava a manta estendida no chão . Não quis comer, disse-me “Porta-te bem” e voltou a manquitar para a venda da amêndoa que era onde fazia falta.

Mas a minha mãe não estava sossegada. “Vou lá espreitar”. Voltou numa corrida “O homem já dorme e a mulher está a dar pão-de-ló à menina”. E , mais descansada, continuou a apregoar as amêndoas branquinhas e o licor de canela.

Talvez tenha passado uma hora, talvez mais um pouco e a minha avó, sem dizer nada, foi espreitar. Lançou logo um grito que alvoroçou a festa. A menina, o casal, o macho tinham desaparecido. A gritaria da minha mãe... nem se consegue imaginar! “Roubaram-me a filha. Roubaram a minha menina”.

A Tia Maria Trovões foi logo chamar a Guarda que andava par ali. Parou a festa. Toda a gente, em grande alarido, foi buscar machos e mulas, até apareceram dois automóveis, mas estradas só havia uma e má. Homens e mulheres, raparigos atarantados, pelo meio cães a ladrar desorientados... A Guarda Republicana pôs-se à frente daquele povo e meteram-se por veredas e carreiros. A uns cinco ou seis quilómetros encontraram o casal. Eu ia a cavalo no macho toda contente.

Veio tudo para o posto da Guarda de Moncorvo. A Tia Trovões e as filhas ficaram a tomar conta da mesa da minha mãe. No posto da Guarda a mulher, por entre lágrimas, gritos e soluços, explicou que não tinha filhos, que não podia ter filhos. A minha mãe e todas as mulheres presentes tiveram pena dela. Mas o mais extraordinário foi quando o tenente da Guarda disse ao casal : “Mas vossemecês estavam convencidos que nós não vos encontrávamos? “ e o homem, até aí calado, respondeu: “O mundo é muito grande! “ Pela cabeça de todos passou a mesma ideia “ Brasil” . Com algum espanto, o tenente perguntou-lhes : “Então vossemecês onde vivem?” “Em Mazouco” , foi a resposta.

por: Drª. Júlia Guarda Ribeiro "Biló"

9 comentários:

Anónimo disse...

Oi, Júlia:
Outro conto tão bonito. O mais engraçado é que os raptores deviam achar que moravam no fim do mundo.

Bj. Liliana

Anónimo disse...

Júlia, desculpa, sou eu outra vez. Esqueci-me de perguntar como é que isso terminou? O casal foi preso?

Liliana

Júlia Ribeiro disse...

Olá, Lili:

Não, ninguém foi preso, porque a minha mãe não apresentou queixa.
E terminou com as duas - a mãe e a queria ser mãe - abraçadas numa choradeira.

Sei que o tempo te é muito escasso, mas tenta arranjar um bocadinho e aparece mais vezes.

Abraço
Júlia

Anónimo disse...

Julinha,

Vais guardando os contos que por aqui aparecem de vez em quando?
Se um dia precisares de qualquer coisa, eu guardo tudo.

Abraço
Augusta

Anónimo disse...

Impertinências ou algo mais

Já li e reli este conto veridico, ocorrido no longinquo ano de 1943, muitos outros episódios, ainda impublicáveis e tb. ocorridos no Santuário, me passaram pela memória,e sobretudo, gostei do seu final entre a mãe e a que queria ser mãe, tendo tudo acabado em bem e na paz do Senhor, perdão, da N.S.do Amparo.

A 1ª impressão, algo material, ocorre-me ao ver ou constatar que nos nossos tempos, na era em que a televisão destruiu de todo o imaginário ou o sentimento colectivo, os raptos ou os roubos de crianças são mais sofisticados e medietizados - Mac.Cann, oblige -.

Mas, o que quero reter deste conto é que narra uma estória com final feliz, á qual, espirito mais crente, ou ingénuo, não deixará de logo o assacar aos bons oficios ou intercessões divinas da N.S.A., até na sequência de tantos e tantos episódios que naquele santuário se passaram.

Reza a lenda da origem do santuário, muito mistica e associada à renovação de um milagre a ela inerente, sucedido em pleno alto mar a um adolescente felgarense, então pobre ou desvalido, á procura do seu el dorado lá para os Brasis e que em transe e na sequência de angustiante súplica á N.S.A. para que lhe salvasse a vida, se viu são e salvo das agruras de uma medonha tempestade que se preparava para desta vida definitivamente o raptar.

Tb. aqui, à semelhança do conto, o final foi feliz, como feliz foi, ao que nos juram, para as dezenas de militares felgarenses que regressaram tb. sãos, salvos e vivos, das ferozes guerras ultramarinas ou das agruaras das emigrações, graças à intercessão de santa tão poderosa. O reconhecimento e agradecimentos exacerbados vêm depois e ao longo destes 117 anos de existência com os romeiros e demais fieis a pagarem ou a cumprirem, de toda a forma e feitio, mas cheios de fé e eternamente agrdecidos, as suas promessas.

O resultado está à vista. Um homem sonhou, a renovação mistica de um milagre continua anualmente, a obra cresce e aparece e a romaria, em si, depois de se europeizar, modernizou-se, cumpre a sua função agregadora da saudade e do bairrismo, apesar de ter perdido, de todo, grande parte do seu natural misticismo em muito coisa que era a sua imagem de marca, por ex.:
- Na solene procissão, já não há choros nem lacrimejantes suspiros ou pedidos, vejo é muitos Kodaks, muita máquina de filmar, muitos pavões a mui artificialmente a pavonearem-se e muitos transfugas sempre a cortarem por atalhos atrás e à frente do espectáculo e avidamente a curtirem ou a verem passar o préstito.
- No solene sermão, o pregador ve-se face a face com meia dúzia de mais atentos ou curiosos, o barulho em seu redor é ensurdecedor, aquele não se faz ouvir, quer-se é dali para fora e quase ninguém presta a atenção devida.
- E até o fogo de artificio, - dura lex sed lex - já quase acabou, só é deitado ao Domingo, muito a medo ou com elevado temor reverencial, ou a troco de contraditória compensação financeira para, isso mesmo, se não lançar.

Enfim, serão sinais do tempo, pena, isso sim, foi as bancas da âmendoa coberta, das súplicas, do licor,do melão, da berbena,... terem desaparecido em prol de um modernismo que bem dispensávamos.

Ainda se o mesmo fim sucedesse àquele mamarracho, edificado pela élite de então para, resguardados na sua artificial importância, tomarem o seu café e sobranceiramente verem e serem vistos pela arraia miúda, e ali a persistir na sua vácua função e inutilidade,até eu, que tão arredio tenho andado da romaria da N.S.A., passava a acreditar em milagres e era mais um final feliz,a juntar a tantos outros.

O impertinente.

Anónimo disse...

Uma estória de final feliz.
Sobre a representação geográfica do "mundo" por parte dos nossos aldeãos, contava-me o meu pai (que era de Mazouco)que um dia um habitante de Freixo, comendo um naco de toucinho rançoso, dizia que toucinho como aquele não havia outro tão bom no mundo! - ao que um irmão mais novo que estava ao lado, comendo outro naco igual, logo ripostou, muito convicto: "- No mundo? nem no concelho inteiro!"
Em todo o caso, quem viu a sua aldeia viu o mundo todo, sobretudo hoje em que o dito se tornou uma aldeia... global. Se fosse hoje a Drª. Júlia só não ganharia à famosa Maddie, porque foi logo localizada, tal como os raptores. Enfim, um happy End...
abraço,
N.

Júlia Ribeiro disse...

Tem razão o Sr. Impertinente.
A Senhora do Amparo arrecadou os créditos do milagre. A minha mãe, a minha avó , a Tia Maria Trovões e todas as vizinhas assim o entenderam: "E se a menina tivesse sido levada por pessoas velhacas? Mas a milagrosa S.ª do Amparo não o permitiu" . E desde os 5 anos que então eu tinha até aos 10, a minha mãe levou-me sempre à Senhora do Amparo e ... vestida de anjinho. Ia na procissão e descalça ( os anjinhos não têm sapatos ) .
Depois ... tive receio que os colegas do Colégio me chamassem anjinha. Estou a sorrir enquanto escrevo este comentário, porque já passei por muito e "anjinha" nem seria o pior.

Razão tem também o Nelson: a medida do mundo é tão subjectiva! Hoje, todo o mundo cabe no "meu mundo", que são os meus netos.
À primeira vista parecerá egoismo dizer isto; pelo contrário, é pelos meus netos que escrevo contos para crianças, é por eles que vou a escolas e bibliotecas, recreios e jardins ler contos para meninos e meninas que, no final, me chamam avó e fazem desenhos para a "Avó Júlia".

E por aqui me fico, senão a impertinência é minha.

Abraços para estes dois Amigos e para todos os blogueiros que por aqui passam.
Júlia

Anónimo disse...

Caros amigos,
O comentário deste último teria dado um post! (pena que só tenha chegado agora, e eu que só o vi dps do meu último comentário). Agradeço o sempre "pertinente" comentário da Drª Júlia, e, já agora, se esse ritual de a levarem descalça tivesse ocorrido na última festa, os seus familiares não se teriam livrado de uma forte reprimenda do sr. diácono (não é dos Remédios, masss parece, hum!...). Ainda hoje o estou a ouvir praguejar do alto do púlpito para o recinto do santuário: "não quero ver mais crianças descalças na procissão!" "não podem fazer promessas para os outros cumprirem!"
"senão vou prometer que ides todos a Fátima a pé, hum!?..." - valente! e bem falado.
abraço,
n.

Anónimo disse...

Há pessoas que deviam ter regressado a Moncorvo. Fazem cá falta. Júlia Barros é uma delas.

Com amizade
Julieta