segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Quadros da transmontaneidade (25)

As sepulturas de S. Cristóvão

Já eu era espigadote e ainda me arrepiava quando passava no caminho que bordeja as sepulturas de S. Cristóvão, escavadas na rocha xistosa. Era sempre da mesma forma, eriçavam-se-me os cabelos e um arrepio percorria-me o corpo, exactamente como quando uma alma se depara, frente a frente, com um lobo, que também era animal da minha escuridão. Vinha-me à lembrança a lenda das formigas gigantes, que a Tia Maria Júlia me contava, tão grandes que comiam crianças e levaram ao abandono do povoado. Tocava com força a burra ruça e, sem olhar, ou então a olhar a crista do monte fronteiro, que sempre ajudava a espantar os pensamentos, estugava o passo para vencer a catatonia que parecia querer tomar conta de mim.
Depois, com o passar dos anos, os medos foram-se desvanecendo, os pensamentos de criança também, então, imaginava-as com os esqueletos dentro, e escavava com a ajuda de um pau que recolhia nas redondezas. Por vezes, fitava-as longamente, media-as com olhar para depressa concluir que eram muito pequenas para alguém poder ser sepultado nelas. Outras vezes, gostava de saltar de fraguinholo em fraguinholo sempre à cata de encontrar algo que ainda ninguém tivesse visto, à espera de descobrir alguma relíquia antiquíssima escondida nas paredes de pedra solta, que imaginava serem aquilo que resta das casas.
Hoje restam-me memórias, e anseio conhecer quem ali existiu.

ANTÓNIO SÁ GUÉ

2 comentários:

Anónimo disse...

Mais um excelente apontamento do Sá Gué! Tive sentimentos parecidos sempre que visitei sítios onde havia marcas ancestrais, como esse de S. Cristóvão, e enquanto me sentia desprovido de uma utensilagem de análise dentro dos parâmetros da lógica cartesiana e dos conceitos "científicos" de tempo e espaço. Mas, mesmo assim, nunca deixei de sentir a "poiesis" que emana de tais lugares. Lembro-me de quando visitei o lugar de S. Cristóvão a 1ª vez, em 1981. Entretanto um estradão mesmo por cima de algumas sepulturas dessas, creio que danificou algumas. Espero que os danos não tenham prosseguido, pois há já uns anos que aí não vou.
As sepulturas remontam à Idade Média, embora alguns vestígios de muros possam ser posteriores. Esperemos que as surribas e os malfadados caminhos novos, ou o alargamento dos caminhos velhos, não comprometam este tipo de coisas, o mesmo é dizer, não matem esses sonhos de infância.
abraço,
N.

Júlia Ribeiro disse...

Viva, Sá Gué; Olá Nelson :

Então já somos três a termos pensamentos idênticos, na nossa idade de inocência, perante determinados lugares.
O meu pavor situava-se na nossa Igreja, logo à entrada , à direita, no altar das almas. Para fingir que ignorava que aquilo lá estava, olhava para o cimo das colunas, olhava para o lado esquerdo, baixava os olhos para as lajes e, encolhida e pelo canto do olho, ainda avistava um pedacinho das chamas do inferno ... se já não avistava, sabia que estavam lá.
Um dia, ainda que tremesse toda, resolvi olhar mesmo de frente. E entre as chamas, de costas para o observador, identifiquei a cabeça de um padre, com a tonsura.
Aquela descoberta era inacreditável : "Padres no inferno ? " . No meio do meu espanto, dei-me conta que estava a observar o altar das almas.
Quando hoje entro na Igreja, a primeira olhada que dou é para o altar dos meus medos de criança.
Ora, querem lá ver que a arenga já vai longa... Desculpem. Ponto final.

Abraços
Júlia