sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Quadros da transmontaneidade (19)

O engaço

O Manel Badio cresceu aos impontões de uns e de outros, cheio de cotras e ranho. Quando chegou a hora de carregar a vida às costas, e não foi muto tarde, foi para Lisboa. Alguém lhe prometeu emprego, e ele, meteu-se no comboio da tarde e lá foi para a capital do império. Por lá andou, por lá se amanhou, sabe Deus como.
Os anos foram passando, e ele foi-se acomodando à vida da cidade. Depois dos anos de vida limpa, já não limpava as candeias ao canhão do casaco, usava lenço de popelina, depois dos anos de vida limpa, já não urinava contra os muros, ia à casa de banho, depois dos anos de vida limpa, já não ia à taberna da Tia Maria Augusta, frequentava a “Chic de Belém”, enfim… a civilização penetrou-lhe no sangue, e aquele feitio arrufadiço, e de prosápia, que Deus lhe deu, também nunca o perdeu, diga-se em abono da verdade.
Cinco anos se passaram e o Manel Badio vem à terra pela primeira vez. Sentiu que tudo estava na mesma, sempre as mesmas pessoas, sempre a mesma labuta. Mas ele estava diferente, já não pertencia àquele mundo, ele era da cidade, era um verdadeiro emproado lisboeta, embora não o reconhecesse, como é lógico.
Era o tempo dos fenos, mês de Agosto, nessa altura a erva era gadanhada a todo o comprimento do lameiro, e depois de seca, era atada em grandes fachas pelos vencelhos que, durante uma noite, ficavam a humedecer na fonte da “Carreira da Fonte”. Para quem conhece as lides da lavoura sabe que o engaço é a peça chave para juntar o feno, ou seja, o ervedo já seco, e que seria a ceia das animálias ao longo da inverneira, que não tardava. É aqui que começa a verdadeira estória do engaço e é aqui que a basófia do Manel Badio veio ao de cima.
- Ó Manel dá-me cá o engaço, se fazes favor – pediu a ti Idalina, que por ali arengava, e reparara que o mesmo estava aos seus pés.
O Manel olhou para lados, fez que não viu aquele objecto dentado com um cabo comprido, e com cara de quem já não sabe o que é, pergunta:
- Engaço… o que é isso?
E no mesmo instante em que pronuncia “isso”, e mesmo antes de a Tia Idalina lhe responder, põe o pé num dos dentes daquele zangarelho que ali estava, e o cabo comprido bate-lhe com toda a força na sua testa estreita.
- Fonha-se lá o engaço – disse enquanto a esfregava com força, e o galo que crescia a olhos vistos.


ANTÓNIO SÁ GUÉ

5 comentários:

vasdoal disse...

Excelente texto numa boa lição para o eng(r)açado.

Anónimo disse...

Viva António!
pois faltou só o desfecho da tia Idalina:
"-ora bês como depressa t'alembraste!..."
Por acaso já o meu pai noutros tempos me contava a mesma estória (sem o chiste literário do Sá Gué) e julgo que estava generalizada um pouco por todo o Trás-os-Montes, cada terra dizendo que se tinha passado com um dos seus íncolas. No fundo era uma espécie de alerta ou de aviso, para que os jovens que um dia saíssem do rincão nunca deixassem de ser o que eram e que não renegassem as suas origens. As lições de trasmontaneidade davam-se assim, por estas parábolas. Infelizmente muitos esqueceram a lição e, volta e meia, por aí aparecem feitos peralvilhos urbanóidizados... - Enfim, para esses é lícito que se lhes seja retirado o passaporte de Trasmontanos, porque não é trasmontano quem aqui nasce, mas quem quem assume o código de conduta e de Honra.
grande abraço,
n.
P.S. - Ah, um aplauso para a nota d ironia do Vasdoal, com os seus (já) famosos trocadalhos.

Anónimo disse...

Hola amigos;aunque un poco falto de tiempo, un gran saludo para todos.
Mi pasaporte trasmontano del lado de acá,como diría N. no necesita ser impreso en papel ni que lo firme ninguna autoridad. lo llevo siempre en la palabra,en el vino que me quita la sed y me retrasa el sentir de las penas. en ese jabalí de O LAGAR, en ese samaritanismo de la gente que nunca tuvo de sobra ni falta que le hace.
Yo no necesito una carta en la que diga que soy trasmontano, os tengo a vosotros.Un abrazo.Angel

Júlia Ribeiro disse...

O texto do Sá Gué é brilhante. Aliás, tudo o que escreve é muito bom.

Era como diz o Nelson. Quando um que fora pelintra e desandara, chegava um dia todo emproado, a mostrar-se mais fino do que os da terra, havia sempre alguém que lhe dizia: " Tem cuidado, não vá o pau da forquilha bater-te na cornamenta". (Era assim o dito na Corredoura).

O Vasdoal tem mesmo piada.

Abraços pra os três.
Júlia

Anónimo disse...

Que saudades já tiínhamos do nosso Amigo Ángel!! - Y tienes de todo razón, buen Amigo: no necessitas de todo el "passaporte" - es uno de nosotros!
E não conhecia esse dito da Cordoira de que fala a drª Júlia - mais uma para o adagiário moncorvense!
abraço,
N.