sábado, 24 de julho de 2010

Pocinho: onde o canto da cigarra já não acorda combóios ...

Como alguns sabem, o escritor Francisco José Viegas tem origens no Pocinho e parece que até estudou em Moncorvo. Nas suas "vacances" por estes lados, de que deve ter fugido atendendo à tórrida canícula daquele fundão do vale do Douro, deixou-nos alguns escritos que retratam essa realidade (climática e não só). A propósito da cigarra do Vasdoal, ocorreu-nos este excerto, verdadeiramente sublime!, que fazemos acompanhar de uma fotografia do vale do Pocinho e Côrtes da Veiga (e de uma locomotiva moribunda), de autoria do nosso amigo Luís Lopes.

Então aqui vai a da cigarra:

«O canto da cigarra já não entristece os mortos. Se o ouvisses poderias ficar louco. Ouvi-lo na sua pujança infinita e religiosa intermitentemente, nas tardes terríveis em que o calor funde o ar - é a possibilidade de enlouquecer eternamente. Esse canto que se estende desde o infinito até ti é mais profundo que a verdade, nada mais para lá dele.
Elas cantarão milhares de vezes, far-se-ão ouvir de um lado ao outro do mundo e então serão terríveis as consequências, milhares de vezes anunciarão o futuro e o passado, os regatos profundos virão à superfície e tu enlouquecerás. Ouve o seu canto. Não o ouças. Esquece e não o ouças.
(...) é tremendo o canto da cigarra, espalha-se por todos os sítios, vem de aldeia para aldeia, cantai bichos invisíveis e terríveis, cantai até que a noite invada o mundo, cantai, pois, e espalhai-vos até aos confins do universo, cantai, invadi as sombras e tornai-as fogo, com o vosso canto tremem os céus, cantai até ao fim da vida, esse canto toca o interior das estrelas, o interior do mundo, o interior do rio.
Cantai ainda terrivelmente desde o invisível de tudo, quebrai o silêncio do mundo, o rumor das searas e tornai impossível o horizonte para lá do vosso canto, cantai, cantai na luz e da luz fazei treva imensa, mais poderosa que a escuridão, cantai, pois, de um lado ao outro do mundo é imenso o silêncio que tendes a quebrar, cantai até ser tarde para o silêncio».
FRANCISCO JOSÉ VIEGAS

Foto: Luís Lopes

2 comentários:

Júlia Ribeiro disse...

O texto é de uma força e de uma beleza extraordinárias ! Sublime é realmente o termo.

Abraços
Júlia

Anónimo disse...

Sim, é verdade, também gosto muito e lembro-me sempre desta poesia em prosa, quando vou por estas estradas da Trasmontânia, em tempos de verão, com o meu ar condicionado de janela aberta - o raio dos bichos parece que nos seguem! um zumbido constante, sem despegar, como diz o Chico Zé... Capaz de nos enlouquecer mesmo.
Mas sabe bem ouvir, e que seria deste verão sem o dourado das ervas secas, o calor tórrido e o canto interminável e metálico das cigarras! Mais: que seria do mundo sem as cigarras?
Abração,
n.