quinta-feira, 6 de maio de 2010

Memórias da linha do Sabor - estação de Carviçais

Estação de Carviçais em 27.04.2010 (foto de Rui Leonardo)

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Sobre a linha do Sabor, ainda há dias aqui escrevemos: "o lanço do Pocinho, Moncorvo e Carviçais (34km) foi aberto à circulação em 17 de Novembro de 1911. Custou cerca de 361.000$000 réis. O lanço de Carviçais foi aprovado em 29 de Fevereiro de 1908 e o projecto do lanço seguinte, de Bruçó a Brunhosinho em 31 de Dezembro de 1910".

Foi há cerca de 100 anos, na transição da monarquia para a República.

O combóio era, na época, a grande esperança de desenvolvimento regional, expectativas mineiras e cerealíferas à mistura. Hoje são os IC's, os IP's, auto-estradas, com outras minas ou talvez não. "Todola vida es sueño..." diria Calderón.

O que ficou? - vestígios e memórias. Chamam-lhe Património. "Património industrial", já que o combóio foi o símbolo por excelência da Revolução Industrial. Todavia a região nunca deixou de ser eminentemente rural. Seria utópico sonhar aqui Birminghan's, Ruhr's ou até mesmo Seixais e Barreiros. Dessa Revolução Industrial chegaram-nos apenas, tardiamente (ou quando foi possível), os fumos de um símbolo dos seus momentos primeiros: máquinas oitocentistas no dealbar do século XX e durante mais de três quartos desse século.

Mas, ficou-nos algo mais, felizmente: excelentes apontamentos escritos pela pena de escritores da região. Aqui ficam apenas dois excertos:

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1 - «Duma ponta à outra são cento e vinte quilómetros, mas quer para cima quer para baixo, aquilo era viagem que durava de manhã à noite. O combóio levava tudo, parava em toda a parte. Nas estações, quase todas isoladas na serra, as cargas e descargas faziam-se lentamente, mas em grande alvoroço, os carregadores a gritar e a correr numa pressa de teatro, temerosos de que o chefe os repreendesse ou o senhor maquinista se irritasse por ter de esperar. (...) De súbito o chefe apitava, a locomotiva respondia, os carregadores batiam uma continência marcial e o combóio arrancava, inclinava-se a fazer a curva, desaparecia entre os taludes. / Tantas vezes viajei nele que, numa ilusão de criança, o julgava coisa minha. O combóio da linha do Sabor existia para meu prazer, era o brinquedo em tamanho grande que me tinham dado e que, num ar de excitação e festa, me levava para a aldeia ou dela me trazia.» - RENTES DE CARVALHO, in: "A amante holandesa", Ed. Escritor, 2003.

Estação de Carviçais - os belos azulejos já foram rapinados das paredes exteriores!

2 - «1977. O combóio marcava o tempo, que bem podia ser adjectivado de medievo: as casas escuras e térreas, cobertas de telha vã, paredes de pedra solta, sem rebôco, partilhadas com os animais, os tavolados toscos e sujos varridos a vassoura de giesta, a iluminação de petróleo. (...) Horário de trabalho: de sol a sol. Horológios: os da torre da igreja, que beatificava as horas com as 'avé-marias', e o comboio, que as mundanizava. Era depois de o apito das dez (horas de terça) entoar pelos campos que se matava a fome e aliviava as dobradiças do moirejar. Era depois de passar o meio-dia, hora de Sexta, que se jantavam mais uns mordos. Era depois do apito das seis da tarde, horas de véspera, que se largava a rabiça do arado. / - Vamos parar, que já lá vai o comboio - dizia o João Caturra que, debaixo de um sol escaldante, segava desde os primeiros alvores do dia. E erguia o costado, deitava a mão às cruzes, e ficava a olhar ao longe aquele mostrengo negro como a fuligem que se aproximava lentamente. (...) ... o combóio já fazia parte da vida e da paisagem. (...) Apita Abílio!... - O Abílio era o maquinista natural da terra, que assim cumprimentava todos, e de uma só vez.» - ANTÓNIO SÁ GUÉ, in: "Contos dos Montes Ermos", ArtEscrita editora, 2007.

Por: N.Campos; fotos: R. Leonardo

1 comentário:

Anónimo disse...

Bom comentário, belos trechos e óptima escrita.

Gostei imenso de ler o post!

Abraço

Isabel