sábado, 20 de março de 2010
Da transmontaneidade (1)
Hoje falo-te das gentes. Falo-te daqueles que nunca foram à escola mas que nada têm de ignorantes. Falo-te daqueles que de tanto cavarem deram forma redonda a esses montes que tanto aprecias. Daqueles que das fragas foram capazes de fazer hortas e do xisto fizeram vinho, conheces? Falo-te daqueles a quem o jugo da vida vergou mas nunca dobraram a espinha, sabes quem são? Falo-te daqueles que sentem o coração acelerar com o abrolhar do plantio e todos os dias amaldiçoam as ervas daninhas. Falo-te daqueles que deram vida às fontes e no sussurrar dos ribeiros foram capazes de escutar o aiar aflitivo de mouras encantadas, de cavaleiros perdidos, que desde sempre souberam dar nome verdadeiro às coisas, captar a sua essência, intuir os mistérios do tempo pelas nuvens e pelas estrelas cintilantes. Daqueles que desde sempre trajam de negro e, ao fim da tarde, se sentam serenamente e esperam que a noite chegue...
ANTÓNIO SÁ GUÉ
Fotografia: João Costa
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1 comentário:
Extraordinário! - Esta é, quiçá, das melhores definições/caracterizações que já vi/li disso a que também chamo de "trasmontaneidade"! É verdadeiramente lapidar.
Infelizmente esta "trasmontaneidade" está a acabar juntamente com as gentes a que se reporta... Esta é uma descrição de um Trás-os-Montes antigo, de antes quebrar que torcer, de dignidade, de lealdade, de fidelidade à palavra dada, de osmose com a natureza, até de horizonte onírico e imaginário. Uma trasmontaneidade morta pelos pragmatismos diversos, pela racionalidade, pela permeabilidade a um globalismo avassalador e até atraiçoada por muitos dos que por cá nasceram, mas que nada têm (e nunca tiveram) desse trasmontanismo antigo. pelo que se poderá dizer também de alguns trasmontanos o que Camões disse dos portugueses: "Também entre os portugueses /traidores houve algumas vezes"....
Talvez esteja na hora de se instituir uma "cartilha do bom trasmontano" pois não deveria ser qualquer um a poder usar este título, separando o trigo do joio.
n.
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