quarta-feira, 17 de março de 2010

Emigração na literatura regional - 4

E para (momentaneamente) rematar este tema da emigração na literatura dos autores da região, nada melhor do que ficar com quem suscitou o assunto, ou seja, a Professora Isabel Mateus, respigando um excerto do epílogo do livro "Outros contos da montanha" (2009), intitulado "O lavar dos cestos":

«Regressava para morrer. Mas não sem antes cumprir a promessa. É que o Gandonha já não lhe poderia valer; agora era também ele só espírito no Paraíso e na Terra não havia mais ninguém que lhe saldasse a dívida.
Enquanto longe da Granja não se sentiu sozinha, porque nunca se separou da lembrança, do exemplo, da coragem e da autodeterminação com que os seus moradores enfrentavam as fatalidades e louvavam a alegria, quando também a recebiam. Emigrante torna-viagem trazia na bagagem essa mesma companhia e todas aquelas vivências do contacto com outras culturas e, ainda mais importante, com as pessoas. Muitas das viagens que não fez, completou-as nos livros de escritores-viajantes antigos e modernos e nas conversas que teve com os amigos espalhados pelo mundo.
Chegou nas férias de Verão à casa materna; agora sua e dos seus irmãos. De chave pronta na mão, abriu a porta principal e invadiu o silêncio sepulcral que dali emanava. Numa fúria arrebatada de fazer a luz do dia entrar, escancarou a janela das traseiras, que ligava a moradia ao ar fresco e puro da Serra do Valente. De seguida, num retrocesso premeditado, tirou o ferrolho à da fachada principal e os raios de sol faiscaram pelos quatro cantos da ampla sala. Repetiu este gesto pelos outros compartimentos e, até que a fria aragem da madrugada a aconselhasse que estaria na hora de cerrá-las, não houve fresta que se mantivesse fechada! (...)
Ela morreu realmente ali. Os seus ossos descansam no alto dos Lombinhos onde a torga, a carqueja, a giesta, a esteva, o alecrim, a bela-luz e o rosmaninho lhe aromatizam a sepultura, os pinheiros lhe fornecem a sombra e a abrigam da chuva e os pássaros a entretêm com a sua cantilena».
Tal como na lenda dos elefantes, não raro os que partiram fazem a última viagem para morrer no local de onde saíram.
N.Campos

2 comentários:

Anónimo disse...

Obrigada N.!

Muito bonita esta "galeria de autores" a roerem-se de saudades e de amor por essas terras de montes e vales. A emigração transoceânica, a intra-europeia e a "interna" são flagelos dos quais houve e há necessidade de falar, na medida em que o fenómeno migratório trouxe e traz oportunidades, mas deixou e deixa marcas profundas que cada um sente a seu modo e com mais ou menos intensidade. A voz feminina sente a emigração de uma forma, a masculina de outra e os intervenientes, tantos os que ficaram, como os que partiram,têm direito a exprimir-se. Os que não podem ou não querem (d)escrevê-la, darão um contributo inestimável para este assunto ao contarem as suas experiências como "reais protagonistas". Deixo um pequeno excerto do ilustre emigrante universal Miguel Torga em relação à emigração em França: "Lião, 25 de Agosto de 1970- O drama da emigração... Aqui o tenho diante dos meus olhos, maciço, brutal, irremediável, a transbordar da exígua sala do consulado de Portugal e a indignar a vizinhança, ciosa do seu sossego, da sua higiene, dos seus ouvidos e do seu olfacto... É um enxame de aflições num cortiço burocrático, onde o zumbido dói no coração, e a imagem da pátria se reduz a um passaporte que permita viver em liberdade e fartura longe dela. O cônsul descreve, os jornais relatam, os filmes documentam, eu próprio posso testemunhar. Mas uma coisa é ser bombeiro, e a outra arder no incêndio. Da mesma maneira que não houve espectadores impessoais à altura da História Trágico-Marítima (nem Camões cantou convincentemente o naufrágio de Sepúlveda), que teve de ser contada pelos reais protagonistas, também agora só algum destes labregos, que se atropelam como numa jangada, a ver se conseguem sobreviver, poderá um dia ser o cronista capaz da História Trágico-Telúrica que viveu, por todas as razões - de tempo e de lugar - mais dilacerante ainda do que a outra." (Diário XI, pp. 1188-9)

Anónimo disse...

olá Isabel!
Nada a agradecer, estamos todos aqui por puro prazer de divulgar estas realidades para, como agora se diz, "memória futura". O seu comentário é que daria um excelente novo post, com Torga a fechar lapidarmente as conclusões - não conhecia essa passagem, pois não li todos os Diários. Mais material para o seu novo trabalho. Força nisso!
abração,
n.