quinta-feira, 4 de março de 2010

A "rebofa" voltou à Vilariça:

"- Então? - perguntou por fim - Lá em baixo, como vai isso?
António Sugão ergueu a fronte, que apoiara nas mãos.
- Lá por baixo - respondeu - vai o inferno! Calamidade assim, há muitos anos que se não viu. Nem os velhos se lembram de coisa igual!
- A rebofa? [1]
- De monte a monte, e cada vez maior. Isto em Maio, quando já toda a Ribeira [2] estava semeada, e as novidades cresciam que era um gosto vê-las!
- E a nossa courela? [3]
-Perdida sem remédio! Tem bons três metros de água em riba dela, e, quando a rebofa descer, nem sombras de meloal, nem de feijão, nem de milho, nem de coisa nenhuma! Lôdo e pedregulho é o que havemos de colher."

[1] Rebofa: termo regional por que é conhecida a cheia da Vilariça.
[2] Ribeira: designação genérica de todo o vale.
[3] Courela: trato de terreno de aluvião na parte mais funda da planície. Chamam-se barrais as terras das margens só excepcionalmente inundadas; e cabeceiras as de mais alta cota, aonde a cheia não chega".

CAMPOS MONTEIRO, A Rebofa, in: "Ares da minha serra", reed. da CMTM, 1995 [1ª. ed. 1933]

Se as "rebofas" (cheias periódicas do vale da Vilariça, que se verificavam anualmente) podiam ser maléficas para a agricultura, por outro lado também tinham as suas vantagens, pois os nateiros constituíam um excelente fertilizante natural. No entanto, no passado, estas "rebofas" originavam constantes demandas entre os proprietários, como anota N.Campos: "acontecia que a ribeira (incluindo o rio Sabor), mudava de leito, com repercussões na propriedade da terra, sendo fonte de graves litígios entre os proprietários. Como primeiro passo para se remediar a situação, Filipe III mandou fazer um Tombo das parcelas, em 1629" mas "só mais tarde, em 1655, com D. João IV, foi expedida ordem para se 'encanar' o leito da ribeira, seguramente através do plantio de árvores ao longo das margens, o que deveria efectuar-se à custa dos interessados (provisão de 1656)". - cf. Nelson Campos, "A evolução da paisagem agrária no Douro Superior" in Viver e saber Fazer. Tecnologias tradicionais na região do Douro. Estudos preliminares (coord. de Prof. Doutora Teresa Soeiro), edição do Museu do Douro, Peso da Régua, 2003 [1ª. ed.].
Com a construção das barragens, este fenómeno da "rebofa" deixou de se verificar tão amiúde, e só em anos muito chuvosos (como foi o caso desta invernada), quando se esgota a capacidade de retenção das barragens, tal volta a acontecer. Assim aconteceu no passado fim de semana, com a abertura das comportas do Pocinho, tendo igualmente voltado as cheias na zona ribeirinha da Régua e da Ribeira, na cidade do Porto.
Aqui se vê, na foto acima, um barco a flutuar sobre o pontão da Foz do Sabor, povoação que ficou isolada da sede do concelho.
Os sinais de trânsito ainda emersos, ficaram, desta feita, a orientar o tráfego fluvial...

Trânsito cortado para a Foz do Sabor, na zona da "ponte seca".

Fotos de Higino Tavares e de Camané Ricardo (a última da sequência) - em 28.02.2010

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