quarta-feira, 17 de março de 2010

Em ano de República - a defesa de Guerra Junqueiro

A propósito das comemorações do Centenário da implantação da República (1910-2010), recebemos da nossa conterrânea e colaboradora Drª. Júlia Ribeiro, este excerto da defesa do poeta Guerra Junqueiro, nosso quase-conterrâneo (nasceu aqui ao lado, no concelho de Freixo de Espada à Cinta, de família oriunda de Ligares):

Em 10 de Abril de 1907 Guerra Junqueiro é condenado pelo tribunal do Porto a 50 dias de prisão, por ter injuriado o rei no jornal A Voz Pública (2 de Nov.º de 2005).

Defesa perante o tribunal

Acusam-me de injúrias ao rei de Portugal. Porquê? Porque chamei à sua realeza uma tirania de engorda e vista baixa. Injuriar é caluniar. Sendo incapaz de calúnias, sou incapaz de injúrias. [...]

Eu não aludo à vida íntima do Sr. D. Carlos. Aludo, é o meu direito e o meu dever, à sua vida de monarca. Ora a história do rei de Portugal, a todos manifesta, em quatro palavras se desenha: Incúrias e desmandos, arbítrios e bocejos. É a verdade clara, verdade autêntica, verdadeira, sinistra. [...]

Eu bradei-a e hei-de bradá-la até à morte. Quem mo impede? A lei? Se a lei, diante dos actos de um homem, nocivos à existência de quatro milhões de criaturas, me tolhe o direito de os combater e condenar, se a lei me obriga a ser injusto e a ser indigno, renego a lei, odeio a lei e não a cumpro. Porque não há lei de tirania que me obrigue a faltar à lei suprema da verdade. [...]

Todas as tiranias são execrandas, porém esta, que nos calca, além de execranda, é vergonhosa. Não lhe movem sequer as fúrias, nem a ambição de uma grandeza terrena nem as labaredas de um fanatismo alucinado. Não dilata os olhos nem para Deus nem para o mundo. Crava-os unicamente em si, no seu egoísmo céptico e vulgar. É, renovo a frase, a tirania de engorda e de vista baixa. [...]

Jesus, o santo ideal, o santo misericordioso, invectivava os déspotas, os fariseus e os escribas, com palavras candentes de indignação e de rigor. Perdoou injúrias e suplícios, sacrificando-lhes a verdade. A verdade bradou-a inexoravelmente, e por ela morreu, de morte infame e divina, entre dois ladrões. Amarga-me a boca a palavra ódio, mas articulo-a aqui, diante dos homens e de Deus, sem contrição e sem temor. Eu odeio o Sr. D. Carlos, não com ódio sangrento ou com ódio de orgulho e de vingança. O meu ódio é bom, conforta-me e consola-me. Odeio o rei, porque amo a verdade e a minha Pátria.”

[GUERRA JUNQUEIRO]

[A Voz Pública. Porto, 11 Abr. 1907]

In: “1907 - No advento da República “ : mostra bibliográfica/ [ org.] Biblioteca Nacional; apresent. Jorge Couto; coord. Manuela Rêgo; Lisboa; BN, 2007; pp. 43-45

Nota: a gravura a cores que ilustra o "post" tem a ver com a questão da nova bandeira de Portugal, sendo, por isso, posterior a 1910, ou seja, posterior ao julgamento que aqui se descreve. É sabido que Junqueiro defendia a manutenção das cores azul e branca com o escudo das quinas, embora sem a coroa real, obviamente (fotografia da gravura de João Costa, a partir de reprodução que integrou uma exposição organizada pelo Sr. Arquitecto Keil do Amaral, inaugurada em 10 de Junho de 2008 no Museu do Ferro e da Região de Moncorvo)

2 comentários:

Anónimo disse...

G. Junqueiro no seu melhor. Diga-se que a sua defesa é um tanto naïf. Essa do "ódio bom", então, é uma tirada anedótica!
Mas aqui não está tudo, pois aí escreveu que "a tirania do sr. D. Carlos procede de feras mais obesas: do porco. Sim, nós somos escravos de um tirano de engorda e de vista baixa".
No "Caçador Simão" (o caçador era o D. Carlos), o poeta freixenista, chega a sugerir a morte do rei (o caçador que foi caçado), razão pela qual foi julgado, de novo, depois de 1908, acusado de autoria moral do regicídio. Bem, só moral, pois no dia fatal Junqueiro tinha um bom alibi: estava em Salamanca com o seu amigo D. Miguel de Unamuno. Será que já sabia que algo se iria passar?

No que toca à bandeira a sua proposta tinha toda a razão de ser, pois achamos que o azul e branco (e não sou do FCP!!!) era mais bonito que o verde-rubro. Deviam ter-se mantido essas cores, com o escudo e mesmo a esfera armilar, ainda que sem a coroa régia. No seu lugar Junqueiro sugeria umas estrelinhas verdes e vermelhas (uma concessão aos carbonários e da loja maçónica que tinha essas cores como símbolo, do iberismo, já agora), o que, diga-se, tornava o seu projecto, nesse aspecto, um bocadinho piroso, mas, do mal o menos. Quanto à bandeira verde-rubra, consta que Junqueiro achava que eram cores dignas de uma "bandeira de pretos"! (ver a propósito:http://jn.sapo.pt/PaginaInicial/Nacional/Interior.aspx?content_id=1488565). - É extraordinário que, por essa época, ainda não se tinha dado nenuma independência a nenhum país africano, pelo que não sabemos como Junqueiro poderia adivinhar que o verde e vermelho entram na grande maioria das bndeiras dos novos paíeses desse continente!!!

Anónimo disse...

Junqueiro foi condenado e muito bem condenado, porque na verdade o seu ataque já não era só político, mas pessoal, soez e tocando as raias da provocação e do insulto a um governante (independentemente de ser ou não o rei ou um presidente da república). Se o seu objectivo era poder puxar das galonas, depois de uma eventual revolução republicana (que veio a acontecer em 5 de Outubro de 1910), aquirindo assim pergaminhos de até ter passado pelas masmorras do rei, bem, então até deve ter ficado satisfeito.
Curiosamente, parece que o homem morreu desencantado com a sua república, pela qual tanto padeceu...
Manuel J. Ramos